domingo, 23 de janeiro de 2011

Águas de Março- Texto e Cultura

Tom Jobim
É pau, é pedra, é o fim do caminho / É o resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida é o Sol / É a noite é a morte, é o laço é o anzol
É peroba do campo, é o nó na madeira / Cainga candeia, é o matita pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira / É o mistério profundo, é o queira não queira
É o vento ventando é o fim da ladeira / É a viga é o vão, festa da cumieira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira / Das águas de março, é o fim da canceira
É o pé é o chão, é a marcha estradeira / Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão / É um regato uma ponte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho / No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe e um prego, é uma ponta e um ponto / É um pingo pingando, é uma conta é um conto
É um peixe é um gesto, é uma prata brilhando / É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha e o dia, é o fim da picada / É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama / É o carro enguiçado, é a lama é a lama
É um passo é uma ponte, é um sapo é uma rã / É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração (…)
É uma cobra é um pau, é João é José / É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho / É o resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo é uma ponte, é um sapo é uma rã / É um Belo Horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão / É a promessa de vida no teu coração
PROCURA-SE  O Tom Brasileiro
É pau, é pedra, é o fim do caminho: em 8 de dezembro de 1994, o país perdeu seu tom maior –
morreu Tom Jobim. Sem a Bossa do grande parceiro de Vinícius de Moraes, o Brasil parece desafinado, sem timbre, sem graça. É que este canhoto genial – como Charles Chaplin e Leonardo Da Vinci – levou com as duas mãos e muito amor a cultura brasileira para o cenário internacional, tornando-a respeitável e admirada. Foi brasileiro nato, neto de Almeida, brasileiro até no nome:
Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Seu nome já fala, por si só, de nossa identidade, fruto de uma história repleta de miscigenações:
Almeida vem do árabe Almarrat, e Brasileiro, dizem, é o sobrenome dado aos filhos bastardos do mulherengo Dom Pedro I – é como misturar pau e pedra em plenas águas de março.
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira: descendente de Paes Leme – bandeirante que desbravou o interior de São Paulo - e apreciador do Marechal Rondon - outro que pôs o pé na estrada para descobrir o Brasil , Tom foi um desbravador de nossas riquezas naturais, conhecendo e defendendo nossa fauna e flora. Misturando o indianismo de Gonçalves Dias com o saudosismo de Casemiro de Abreu, dizia: Quando estou no exterior, sinto muita falta da mata brasileira. Ecologista bem antes de ecologia virar moda, quando podia, reclamava: O nome do Brasil é pau-brasil.
Então, como é que se pode ter o Brasil sem pau-brasil? Essa frase, por sinal, nos faz associá-lo ao poeta Oswald de Andrade e à pintora Tarsila do Amaral, modernistas do movimento Pau-Brasil.
É uma ave no céu, uma ave no chão: conhecedor de penas e pios, de cores e nomes – do urubu ao matitapereira
– Tom trabalhou a musicalidade de nossos pássaros em suas partituras.
Trilhou a linha do maestro Villa-Lobos, estudioso do folclore brasileiro, autor de Floresta Amazônica, participante da Semana de Arte Moderna, mestre de nosso maestro soberano. E para falar da criação de um tom brasileiro em nossa arte, Jobim recorria a outro modernista, cuja morte fez 50 anos em fevereiro: o poeta e musicólogo Mário de Andrade, autor de Macunaíma e Paulicéia Desvairada – Se você não tiver talento, faça música brasileiro. Se tiver algum talento, faça música brasileira e, se for um gênio, faça música brasileira.
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada: para quem acha que Tom apenas dava ouvidos às aspirações de uma  classe média abastada, que tomava uísque vendo moça bonita desfilar em Ipanema nas intermináveis boemias, o compositor cantou o árduo cotidiano de trabalho iniciado com “a luz da manhã” e “o tijolo chegando”, retratando o desgosto no rosto de João e José, que ali viam na cachaça a dor de estar no “fundo do poço”.
São as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração: Texto & Cultura nasce com as águas de março prometendo intensa vida cultura. Nesse primeiro número, discutimos o conceito de identidade cultural a partir da idéia de “sentimento nacional”: a arte brasileira é um “carro enguiçado”? Na “lama” das nossas misérias, a arte cria ou copia? Jobim, usa Andrade e Tarsila do Amaral; música, literatura e artes plásticas… Eis o desafio: vamos lá!

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