Para Rodrigo Naves, crítico de arte e editor dos Cadernos do Cebrap, a arte não pode ter o compromisso de edificar um perfil nacional. Naves discute, aqui, o difícil diálogo entre os artistas brasileiros e a arte moderna.
Paulo César de Carvalho- Editor de Texto & Cultura
Existe uma arte brasileira?
Rodrigo Naves – O que poderia caracterizar como “arte brasileira” seria o nexo, a unidade entre as produções de vários artistas brasileiros, à medida que foram feitas em circunstâncias sociais semelhantes. Mas a situação social do Brasil, as disparidade sociais, as mazelas, colocam o artista numa posição dúbia quando se trata de construir uma identidade nacional. Outro traço comum é a timidez formal, a dificuldade de alcançar certas características da Arte Moderna, entre as quais o fato de que as formas tenham presença taxativa, cabal, na obra. As artes plásticas modernas aceitam com muito prazer seus próprios limites. A superfície é superfície, não é mais “janela” no sentido da perspectiva renascentista [obs.: para facilitar a compreensão, organizamos um glossário com os termos e personagens menos conhecidos, grifados conforme aparecem no texto]; a linha é linha, não é mais o contorno da maçã; a cor é cor, não é mais cor local. A timidez brasileira aparece de forma paradoxal, por exemplo, na excelente pintura do Alfredo Volpi: o que ordena o quadro não são as formas, mas é uma espécie de fragilidade da matéria, que por ser tão frágil aceita qualquer formalização. As suas “bandeirinhas” não estruturam a tela com rigidez. No Brasil, há essa dificuldade de estabelecer relações fortes que criem percepções diferentes das cotidianas e, portanto, que dêem à arte uma dimensão crítica forte. Isso é parecido com o Brasil que não tem relações de classe marcadas nem partidos organizados, em estrutura econômica complicada e um amplo setor da sociedade que não é cidadão. Essas mazelas são incorporadas de modo problemático, mas interessante, pelas artes plásticas. Isso pode dar uma certa identidade à nossa arte, mas não se trata de uma identidade carnavalesca, a mulata gostosa, o catador de café com o pé enorme.
No Manifesto Antropófago – um dos textos mais importantes da vanguarda brasileira de 1922 Oswald de Andrade diz: Só me interessa o que não é meu. A arte brasileira se interessou pela produção européia, de ponta?
Rodrigo Naves – Num país atrasado como o nosso há um óbvio interesse pela produção de ponta.
O interessante é ver como esse diálogo se dá.
No caso do modernismo brasileiro, há uma relutância incrível ao diálogo, que reflete o compromisso dos artistas com a criação de uma identidade. Esse compromisso faz com que a autonomia que a arte francesa moderna tem aquilo de linha ser linha, cor ser cor – o Brasil não tenha. Há outras condicionantes que regem o que é feito aqui, que nascem do tipo de relação que temos com a sociedade. No Volpi, azul pode ser azul ou não; no Matisse, vermelho é sempre vermelho.
Pode-se dizer que a arte brasileira faz uma “deglutição” da européia?
Rodrigo Naves – Isso pode gerar um problema: para fazermos uma forma brasileira, precisaríamos ter uma estrutura frouxa, que seria uma maneira de incorporar a estrutura social brasileira. Veja o caso do Debret, artista neoclássico francês defensor de uma noção de forma rigorosa, da virtude, da ética e de formas que mostram sensivelmente a capacidade de o homem impor a sua vontade às coisas. Debret vem para o Brasil em 1816, para fazer a Escola de Belas Artes no Rio, e se dá conta de que seria impensável fazer arte neoclássica num país com escravidão. Como é que uma concepção heróica da forma pode ter vigência numa sociedade com escravos? Como se podia pintar um negro como se fosse Apolo, tomando chibatada?
Então, ele faz aqui uma obra quase singela, nada a ver com o neoclássico. Ficou aqui 15 anos e foi talvez o primeiro estrangeiro a buscar um sistema que incorporasse a confusa sociabilidade brasileira. Suas figuras são frouxas.
A vivacidade temática convive com uma estrutura formal bamba – isso é Brasil!
No século XIX, o Brasil era agrário e escravocrata, e sua arte era difusa. No século XX, o capitalismo criou uma estrutura urbana e a forma artística ganham contornos mais nítidos. Como se coloca a relação entre forma e sociedade na arte contemporânea brasileira?
Rodrigo Naves – À medida que a sociedade se estrutura, parece que a forma acompanha esse movimento. O problema, agora, é a relação tensa entre forma e matéria. É como se a matéria não se submetesse à forma.
Esclarecendo: em Davi, de Michelangelo, não há contradição, a matéria se sujeita à forma, pouco importa se é ou não o mármore. Já na obra de Amílcar de Castro, apesar da estrutura formal bem marcada, em momento algum se perde de visa as resistências do material à forma que se pretende dar. Essa tensão é análoga à tentativa de se organizar o país como sociedade ao mesmo tempo em que uma massa inerte resiste a isso. Nesse sentido, o Brasil é um problema para a arte brasileira.
Tom Jobim afirmava a necessidade de se realizar uma música brasileira. Você não parece acreditar que a identidade cultural tenha que ser parte de um projeto artístico.
Rodrigo Naves – Se formos pensar de maneira programática a questão de se fazer uma arte brasileira, isso termina por não ser arte. Vira panfleto, cai no anedótico do Di Cavalcanti.
Uma sociologia ruim da arte, o negócio das mulatas, uma coisa meio carnavalesca. No final, fazem-se operações que reforçam arquétipos, modelos, símbolos nacionais, algo da bandeira: você bate continência. Tarsila do Amaral conseguiu uma expressão particularizada de um certo trabalho moderno francês, aliando seu mestre Léger à uma preocupação nacionalista.
Não sei se poderia falar numa autenticidade, talvez na fase pau-Brasil, antropofágica. Não é função da arte produzir identidade, muito menos nacional. A arte tem que ter uma estranheza, sem compromisso com a edificação de um perfil nacional. É uma busca de universalidade, sem se ater muito aos conceitos.
Glossário
Alfredo Volpi: integrou em SP, nos anos 30 o grupo Santa Helena, formado por operários e filhos de imigrantes. Sua obra vai do figurativismo, que mistura naturalismo e impressionismo, à fazer concretista das bandeirinhas e construções cromáticas.
Amílcar de Castro: estudou com Guignard desenho e pintura em MG. Na década de 40, começa a se afastar da figuração, abandonando-a nos anos 50.
Participa de exposições do Grupo Concretista em SP. Seus trabalhos mais conhecidos são as culturas em chapas de aço e ferro.
Apolo: deus grego que simboliza o ideal clássico de beleza, de perfeição, de equilíbrio.
Di Cavalcanti: fundador do CAM – Clube dos Artistas Modernos – em 1932. retratou aspectos exóticos do Brasil, como as mulatas em forma estilizada e com a utilização de cores fortes.
Michelangelo: grande artista do Renascimento italiano, ao lado de Leonardo DaVinci. Suas obras mais conhecidas são Criação de Adão, na Capela Cistina, e as esculturas Davi e Pietá.
Pau-Brasil: movimento lançado por Oswald de Andrade em 1924, com a poesia Pau-Brasil. Contou, na pintura com a adesão de Tarcila do Amaral.
Seu objetivo é criar uma arte genuína brasileira.
Perspectiva Renascentista : origina-se da noção de ponto-de-fuga. Cria um campo-de-visão em profundidade, ou seja, dá ao observador a ilusão de profundidade diante de uma superfície plana.
Tarsila do Amaral: ao lado de Anita Malfatti, a mais importante pintora de 1922. Seguidora do francês Léger. Trouxe para o Brasil as formas técnicas do mundo mecânico do início do século.
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