sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Estados Unidos x Japão: conflitos de interesses anunciam uma nova era Queda-de-braço entre gigantes redefine economia global

Os homens de Estado americanos são loquazes; os japoneses são pragmáticos. A América usa a força no exterior; o Japão é resolutamente insular. A América é federal, plural, ama a livre escolha; o Japão é centralizado, homogêneo, ama o igualitarismo. Não surpreende que esse par bizarro tenha construído uma aliança bizarra. Seu tratado de segurança assenta-se em que a América defenderá o Japão, mas o Japão nada fará para proteger a América.
Suas relações econômicas são atormentadas pelo superávit comercial japonês e pelo superávit de queixas americanas a respeito dele. (The Economist, 13.mai.95, pág. 35)
Durante cem anos, o eixo da economia mundial repousou sobre o Atlântico Norte, o “mar interior” que conecta os Estados Unidos à Europa Ocidental. Há duas décadas, esse eixo se deslocou para a Bacia do Pacífico, puxado pela expansão industrial asiática. Os pilares sobre os quais se apóia o novo eixo são os Estados Unidos e o Japão. A parceria entre as duas potências econômicas evoluiu no sentido da assimetria e do desequilíbrio. Essa é a fonte da crise que as assombra.
Nos anos 80, configurou-se a geometria das relações econômicas entre os Estados Unidos e o Japão. A estratégia cambial* [as expressões marcadas com * são explicadas no Glossário de Ronald Reagan impulsionou os juros americanos para a estratosfera, supervalorizando o dólar. A expansão do consumo interno teve como contrapartida o desabamento da balança comercial* e, com ela, da conta-corrente*. No Japão, tudo se passava ao inverso: a sub valorização  cambial do iene mantinha comprimido o consumo interno e ampliava as exportações. Os saldos comerciais multiplicavam-se, gerando superávit na conta-corrente.
É uma relação estranha. O desequilíbrio no comércio bilateral entre as duas potências econômicas reflete-se na imagem espelhada das balanças comerciais e das contas correntes: nos últimos doze meses, os Estados Unidos acumularam déficits de mais de US$ 180 bilhões no comércio externo e de mais de US$ 160 bilhões no total de transações correntes, enquanto o Japão obtinha superávits de quase US$ 145 bilhões e mais de US$ 120 bilhões, respectivamente.
Há dez anos, o rio de dinheiro que fluía para o Japão, levado pelos saldos comerciais, gerava a maior bolha especulativa* do século: o capital abundante caçava uma área limitada de terras para investimento, catapultando os preços dos imóveis. A especulação imobiliária transbordou para a Bolsa de Valores, alçando a patamares inéditos os preços das ações. Os bancos concediam financiamentos e empréstimos, garantidos por imóveis ou ações supervalorizados dos tomadores. O Japão parecia, como que por encanto, ter se transformado em ouro. Na ciranda especulativa, os japoneses justificavam o preço das ações pelo preço dos imóveis, acreditando que uma faceta do boom era uma base sólida para a outra.
Não era. O encanto se quebrou em 1990, quando o índice Nikkei precipitou-se no abismo, caindo de 38.915 pontos para a faixa dos 15.000 pontos em 1992. O valor dos imóveis, preso ao das ações pela lógica da ciranda financeira*, despencou junto, provocando um terremoto em todo o sistema de empréstimos do arquipélago. Os devedores, empresas ou particulares, atingidos por perdas irrecuperáveis na Bolsa de Valores e pela desvalorização do patrimônio imobiliário, não podem honrar as suas dívidas. Os bancos, sentados sobre uma montanha de créditos podres que soma US$ 460 bilhões (algo como o PIB do Brasil), conhecem a antecâmara do inferno. Os onze maiores bancos acabam de publicar balanços que registram baixas de resultados de 90%.
O Sumitomo Bank, maior estabelecimento do mundo, anunciou o primeiro balanço negativo desde a Segunda Guerra, com perdas de US$ 3 bilhões. O Tokyo Kyowa Credit e o Anzen Credit Bank já abriram falência.
A crise é agravada pelo encerramento do ciclo histórico do iene sub valorizado, em função das novas estratégias econômicas americanas. O primeiro sinal da reviravolta foi o chamado Acordo do Plaza, em 1986, pelo qual o G-7 (grupo das sete maiores economias) se engajou na reorganização das taxas de câmbio. A economia americana não podia mais conviver com as taxas de juros estratosféricas de Reagan, que provocavam endividamento insuportável do Tesouro. A queda dos juros nos Estados Unidos condicionava uma redução da demanda por dólares, determinando a desvalorização do bilhete verde.
Em 1991, a recessão que se abateu sobre os Estados Unidos precipitou o inevitável. As taxas de juros foram cortadas várias vezes, a fim de estimular a retomada de investimentos e consumo. O novo movimento de desvalorização do dólar servia para reativar as exportações, na tentativa de reduzir os déficits da balança comercial. No Japão, o iene sofreu o impacto do enfraquecimento do dólar, assumindo uma trajetória ascendente. Em 1985, o câmbio registrava mais de 230 ienes por dólar; em 1991, atingia 130 ienes; em 1994, o iene ultrapassou a barreira psicológica dos 100 por dólar e continuou a se  valorizar .
O Super Iene simboliza o fim de uma era. O crescimento japonês não pode mais prescindir do mercado interno e as empresas nipônicas têm que aprender a competir em condições mais duras. A recessão prolongada que afeta a economia do arquipélago assinala essa dupla transição: a morte do iene barato e a ruptura da bolha especulativa das finanças.
O equilíbrio sobre o qual repousa o eixo assimétrico da economia mundial já não existe mais. O comércio entre os seus dois pilares terá que se readaptar às novas condições do câmbio e às necessidades de estabilização da conta-corrente americana. A guerra comercial, essa ameaça permanente, pesa como nunca sobre os gigantes da economia global.
Glossário
Estratégia cambial: o câmbio é o valor da moeda expresso em outras moedas; a estratégia cambial de Reagan implicava a valorização do dólar diante das demais moedas fortes.
Balança comercial: saldo entre exportações e importações de mercadorias.
Conta corrente: saldo de todas as transações correntes, que inclui a balança comercial, as exportações e importações “invisíveis” (serviços) e os juros e rendas recebidos e pagos ao exterior.
Bolha especulativa: fenômeno da economia caracterizado pela expansão de preços de ativos (imóveis,  aplicações ou ações) ocasionado pelo movimento de capitais excedentes.
Ciranda financeira: movimento frenético de capitais no circuito financeiro e imobiliário, desconectado de investimentos produtivos.
Boletim Mundo Ano 3 n°5

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