Regina Aída Crespo, professora da Unesp no Campus de Marília (SP), realiza pesquisas no México com o apoio do CNPq
“Salve o bispo Samuel Ruiz, viva a teologia da libertação!” A canção soa de um gravador portátil junto a uma barraca de indígenas do Estado de Chiapas, no centro do Zócalo -a praça principal da Cidade do México e, em termos políticos, o ponto mais importante do país. No Zócalo culminam as manifestações e marchas de protesto de todas as partes do México.
Converso com Roque, líder do acampamento montado em frente ao Palácio Nacional (a antiga sede do governo federal) desde o início do governo Salinas, em 1988. Em defesa do Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN) e do bispo Samuel Ruiz, atacado por membros do governo, da elite mexicana e pelas seitas protestantes de Chiapas, Roque afirma eufórico que “85% dos chiapanecos são zapatistas”. E que todos apóiam Ruiz, “que não é zapatista”.
Barracas de camping, cabanas de papelão, crianças brincando e um permanente cheiro de comida são rotina no Zócalo. Em meados de março, cerca de 3 três mil indígenas do Estado de Guerreiro juntaram-se aos de Chiapas e estiveram acampados por vários dias, até ter a garantia de que receberiam o auxílio econômico do governo. Os acampamentos (“plantones”) misturam protesto e festa. Há muitos discursos, cartazes e danças apresentadas pelos vários povos que compõem esse país multi-étnico.
Junto ao acampamento, vendem-se jornais e folhetos sobre o EZLN, além de fotos dos guerrilheiros e do subcomandante Marcos, transformado em herói. Num país em que se cultuam heróis mascarados, Marcos surge como personagem paradigmático e surpreendente. Embusteiro para alguns, gênio para outros, o subcomandante vem se transformando numa força alternativa dentro do viciado panorama político do país. As fotos e os jornais atraem os que passam. Muitos param, alguns compram e vários colocam sua moeda nas latinhas de contribuição voluntária. “Graças à compreensão e revolta do povo mexicano, acentuadas pela crise econômica, podemos manter nosso protesto contra a política neoliberal do governo e exigir nossos direitos” -diz Roque.
Além do Palácio Nacional, o Zócalo é circundado pela Catedral Metropolitana e por antigos edifícios dos séculos XVII, XVIII e XIX, transformados em bares, lojas e hotéis. Um pouco distantes, mas ainda compondo a praça, vêem-se as ruínas do Templo Maior da antiga capital asteca, Tenochtitlán, e o museu, um moderno edifício de concreto, que guarda o material arqueológico encontrado ali. A mistura de tantos séculos se reforça com os grupos de “concheros”, bailarinos vestidos de astecas, dançando ao som de um tambor que ecoa por toda a praça.
A catedral, o monumento mais imponente do Zócalo, está afundando, principalmente depois das escavações do Templo Maior, que aceleraram a desestabilização do terreno. O interior do prédio está sustentado por andaimes. Diz-se que são os astecas cobrando o seu antigo solo. Mas o assédio de fiéis à missa e as manchetes destacando a força da Igreja na política mostram que se a catedral afunda, a Igreja permanece.
Ao lado da catedral se sucedem barracas de comida, panfletos políticos, bijuterias e artesanato.
Um velhinho sem dentes e maltrapilho utiliza o microfone e, animadamente, se dirige aos que passam:
“Não votem mais no PRI! Zedillo, Salinas, Lopez-Portillo, Echeverría, os presidentes não são mexicanos, são uns espanhóis sem vergonha! Salinas está rindo dos mexicanos, pois já vendeu o país aos gringos, e agora Zedillo quer vender o petróleo da nação!” O velhinho não pára. As pessoas sorriem, e, quando perguntadas, respondem: é, a situação aqui está feia, os pobres cada vez mais pobres, os políticos todos iguais...
Inicia-se uma estridente música militar. Todos os dias às 18h, um pelotão da Guarda Nacional, sediado no Palácio, vai ao centro do Zócalo recolher a bandeira mexicana que será novamente hasteada na manhã seguinte. Agora, a praça está lotada. Militares paramentados; indígenas acampados; “concheros” reverenciando a cultura pré-colombiana, turistas atordoados; religiosos deixando a missa, trabalhadores a caminho da estação do metrô.
O Zócalo,síntese do país, coloca a questão: quem são, afinal, os mexicanos ? O velhinho do microfone, de traços europeus, acusa Colombo de ter trazido para a América “os espanhóis sem vergonha” que desgovernam o país e o vendem aos americanos. Os “concheros”, muitos autointitulados representantes da “mexicanidade”, cultuam um passado glorioso, mas ficcional: o império asteca não voltará. Os indígenas não têm um indígena como líder, mas enfatizam que, para eles, Marcos não é um estrangeiro. Os soldados voltam agora ao palácio com a bandeira do país, e a grande massa de trabalhadores volta para casa. Sob a imagem de convívio entre tantos opostos, o México, subterraneamente, fervilha.
Os sinos dobram pelo mais antigo regime de partido único do mundo
O colapso da União Soviética, em 1991, conferiu ao México a condição de mais antigo regime de partido único do mundo. O PRI (Partido Revolucionário Institucional), ocupa o poder há 66 anos, desde que foi fundado, em 1929, sob a denominação de PNR (Partido Nacional Revolucionário). Por todo esse tempo, existiram outros partidos no México, mas eles desempenhavam a mesma função decorativa dos partidos não-comunistas dos ex-satélites soviéticos no leste europeu.
A hegemonia absoluta do PRI, que garantia a sua vitória tanto nas eleições federais como nas regionais e locais, era fruto da identificação entre o Estado e o Partido. O controle corporativo sobre os sindicatos e movimentos populares, o financiamento empresarial, o coronelismo, a fraude e a intimidação funcionavam para perpetuar o poder priista. Em agosto do ano passado, comentando a eleição que conduziu Ernesto Zedillo à presidência, Mundo observou que ele poderia “se tornar o último dos herdeiros da dinastia do PRI”. Alguns meses depois, os fatos falam por si: o PRI está se desintegrando, em meio a escândalos de corrupção, acusações de assassinato e incompetência para lidar com uma crise monumental que o próprio partido ajudou a arquitetar.
No rescaldo do colapso financeiro de janeiro, Zedillo abandona as tradicionais lealdades de clã da cúpula priista e deflagra uma guerra contra o ex-presidente Carlos Salinas de Gortari, que por sinal apadrinhou a sua ascensão ao poder. Em fevereiro e março, o presidente ordenou a prisão de Raúl Salinas, o irmão de Carlos, e de Mario Massieu, exsubprocurador da República, sob acusações de conspiração, assassinato e envolvimento com o narcotráfico.
Mas o presidente não parou por aí. Culpou o seu antecessor pelo desastre econômico e estimulou as denúncias de enriquecimento ilícito e obstrução das investigações do assassinato de Luis Donaldo Colosio, o candidato original do PRI às eleições presidenciais do ano passado. Um dos resultados dessa operação política foi a fuga de Carlos Salinas de seu próprio país para os Estados Unidos, em março, por temer um destino semelhante ao do irmão. Não deixa de ser cômico o contraste entre sua situação atual e a arrogância triunfalista que ostentava quando o ingresso de seu país no Nafta, em janeiro de 1994, parecia garantir ao México um novo surto de prosperidade.
A ofensiva do presidente é uma operação desesperada.
Zedillo luta para salvar o seu mandato, oferecendo negociações aos guerrilheiros do Estado de Chiapas e a cabeça coroada dos manda-chuvas do ancién régime à opinião pública cansada da corrupção oficial. Nessa trajetória, rompe a solidariedade interna do PRI e golpeia as estruturas clânicas que o conduziram ao poder. Pode ser que dê certo e o presidente salve o seu mandato, mas o preço terá sido a destruição do regime autoritário, elitista e corporativo que esculpiu o México moderno.
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