terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Direitos Humanos- Brasil vive em Clima de Guerra civil, Afirma Pierre Sané

O secretário-geral da Anistia Internacional visitou o Brasil no começo de abril, quando se reuniu com representantes do governo, com favelados no Rio e em SP, e entregou ao presidente Fernando Henrique Cardoso uma proposta de 40 pontos para criar no país um Plano de Ação nacional contra a violência
Estamos acostumados a acreditar que o Brasil é uma democracia, e temos razões para isso. O país consolidou um sistema de eleições diretas, e se comportou com equilíbrio em 1992, durante o processo de impeachment do então presidente Collor. Há ampla liberdade de expressão, organização e manifestação, a tal nível que é difícil explicar aos jovens o que foi a ditadura -a tortura e o assassinato de presos políticos, a censura. Quem, hoje, acreditaria que os brilhantes censores da ditadura prenderam um estudante de Engenharia da USP, em 1968, apenas porque ele portava um livro intitulado.
‘‘Bombas Hidráulicas’’?
Tudo isso, porém, é pouco para caracterizar a existência de uma democracia.
O Brasil está muito longe de ser um país que respeita os direitos dos indivíduos. Se não existe mais a violência política contra os opositores, há um regime de terror praticado contra a população por setores da polícia associados aos ‘‘esquadrões da morte’’. O  número de mortes violentas  indica um país em guerra civil. Apenas para efeito de comparação, na violenta Nova York, a polícia mata menos de 50 pessoas, em média, por ano. Isto é menos do que a PM mata por mês em SP e no Rio.
Esse quadro assustou o secretário-geral da Anistia Internacional, o senegalês Pierre Sané, durante sua visita de duas semanas ao Brasil, em abril.
Nas favelas cariocas de Vigário Geral e Acari, Sané ouviu relatos de uma população aterrorizada. ‘‘Cada vez que minha filha sai de casa, de manhã, não sei se a verei à noite -conta uma senhora, em prantos. Tenho medo que algum policial a seqüestre para fazer coisa ruim com ela. E se não é o policial, pode ser algum traficante. O que a gente pode fazer? Quem pode ajudar?’’. Histórias assim se multiplicam. Em SP, um pedreiro conta que se dirigiu a uma delegacia de polícia para dar queixa de um atropelamento com fuga. Os policiais resolveram ‘‘brincar’’ com ele para passar  o tempo. Foi submetido a tortura e humilhações, e ainda ameaçado de morte caso resolvesse abrir processo.
À época da ditadura, o terror atingia também os setores brancos e  intelectualizados -estudantes, jornalistas, professores, políticos. Hoje, se você for negro e pobre, terá muito mais chance de ser vitima da violência policial do que se branco e da classe média (isso, para não falar dos povos indígenas).
O racismo é um dado inerente à violência neste país. A maioria da população é negra, mas há, proporcionalmente, muito mais negros nos cárceres do que nas escolas e na administração pública. Não há, aqui, um racismo transformado em Lei, como na antiga África do Sul ou nos Estados Unidos de Martin Luther King, mas uma segregação encoberta pelo mito da democracia racial, do carnaval e futebol.
São os negros que mais sofrem com o desemprego e a miséria. Não é necessária nenhuma estatística para mostrar que é negra a maioria dos meninos de rua, das prostitutas e dos desempregados que vivem nas ruas.
Confrontado a essa realidade em reunião com Sané, o presidente FHC admitiu que a polícia está fora de controle.
Embora tenha recebido Sané em clima cordial, FHC não se mostrou disposto a cobrar das Forças Armadas a responsabilidade pelos casos de tortura e morte ocorridos sob a ditadura, embora haja perspectivas de que esse quadro seja alterado .
O mais grave é que se consolida na opinião pública a noção de que a violência é a única forma de combater o banditismo. Muitos, por exemplo, apoiaram o policial que fuzilou a sangue- frio um ‘‘bandido’’ no Rio, diante das câmeras do Jornal Nacional. Tornou-se comum identificar a defesa dos direitos humanos à defesa dos ‘‘bandidos’’.
É exatamente o contrário. O banditismo prolifera nas sociedades violentas, sem Lei -ou melhor, onde a lei é a do mais forte.
Como observou Sané, há uma contradição entre a política externa brasileira e a situação interna com relação aos direitos humanos. O Brasil foi um dos países mais ativos na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, em setembro de 1994. Assinou a Carta de Viena, recomendando um Plano Nacional de Ação (PNA) para implementar uma política de Direitos Humanos, já adotado pela Austrália.
Mas essa disposição esbarra em obstáculos no país.
Sané apresentou ao governo, em todos os níveis, uma proposta de 40 pontos para criar as bases para um PNA no Brasil. Apesar de FHC ter mostrado ‘‘simpatia’’ pela idéia, os próprios representantes do governo afirmam que a mentalidade tradicional resiste a uma perspectiva democrática.
Burocratas, funcionários públicos e policiais de carreira -muitos, corruptos até o pescoço- não querem ouvir falar em direitos humanos. Felizmente, eles se chocam com uma geração de funcionários mais jovem, competente, nada corrupta e muito  séria -por exemplo, os jovens advogados que fazem carreira nas procuradorias-gerais dos Estados -, que traz uma esperança de mudança.
Como diz Sané, a linguagem da violência só será erradicada do Brasil quando a democracia já conquistada no plano da representação político-partidária for estendida ao cidadão comum. Mas há o risco de que aconteça o contrário: a violência liquidar a democracia. Os morros do Rio, tomados por traficantes e esquadrões da morte, são uma prova de que é real o risco de que o Brasil acabe se transformando em terra  de ninguém.
Números do terror
Apenas no Rio, nos 10 meses entre o massacre de Vigário Geral, em setembro de 1993, e junho de 1994, 1.200 pessoas morreram nas mãos de esquadrões da morte. 80% desses casos permanece sem solução.
Dos mais de 2.000 assassinatos no Rio em um ano (1993-94), 600 das vítimas não foram identificadas. Vítimas e assassinos têm isso em comum: ambos são desconhecidos.
O número de assassinatos baixou, em SP, de 1.345 (1992), para 319 (93) e 413 (94).. Mas, só em janeiro (governo Covas), a Rota matou 60 Ninguém foi ainda responsabilizado pelo massacre de 111 detentos no Carandirú (SP), em outubro de 1992 Dos 173 assassinatos no campo em 1993, por pistoleiros contratados, 80 contaram com a participação de policiais militares e civis.
Revista Mundo Ano 3 n° 3

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