quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Meu Inimigo, O Estrangeiro: Acordo na África do Sul e Israel não Cicratizam a Chaga do Racismo

Os conflitos raciais refletem e reforçam o quadro de perplexidades que caracaterizam o mundo pós- Guerra Fria
1994 assinalou o fim de dois importantes regimes de segregação racial: o apartheid na África do Sul (com as eleições multirraciais de abril, que elegeram Nelson Mandela à Presidência), e o não reconhecimento da existência do povo palestino por Israel (com o início da implementação do acordo de setembro de 1993, entre Israel e a OLP). Mas a segregação continua existindo na África do Sul, e em Israel, os palestinos ainda são cidadãos de segunda classe. Qual é, então, o impacto e o alcance real dos acordos? A resposta não é simples.
Uma perspectiva “otimista” diria que o mundo atual oferece maior espaço à existência do pluralismo étnico em espaços territoriais que, antes, exigiam a supressão das diferenças. Este maior pluralismo seria resultado do fim dos blocos antagônicos (capitalista e comunista).
Livres dos compromissos ideológicos e militares impostos pelo terror nuclear, os Estados podem permitir a expressão de tensões que antes ameaçariam o precário equilíbrio EUA-URSS. A recíproca é verdadeira.
Os movimentos de libertação nacional e o antiapartheid perderam seu alimento ideológico – a tensão entre as superpotências. Por exemplo, reconhecer aos negros o direito de voto na África do Sul dos anos 80 poderia significar o fortalecimento da esquerda, com risco de colocar o país na órbita soviética. O mesmo poderia ser dito em relação à OLP, que dialogava com Moscou em oposição à Israel, apoiada por Washington. Por analogia, seria impensável, nos anos 80, o acordo entre o IRA (Exército Republicano Irlandês) e Londres, anunciado em 31 de agosto. A desideologização do Estado teria implicado a abertura de espaços de tolerância e acomodamento das tensões.
Mas uma perspectiva “pessimista” poderia ser esgrimida com igual força. No pós -Guerra  Fria, a maioria das nações continua sofrendo as conseqüências do desequilíbrio entre ricos e pobres, Norte e Sul. O reconhecimento  de certos direitos aos negros sul-africanos e aos palestinos seriam meras medidas de adequação às novas regras da competição internacional, baseadas no surgimento de blocos econômicos. Essas regras tornam insuportáveis os custos de preservação da segregação na África do Sul e em Israel. Seria mais cômodo, eficaz e lucrativo mudar a forma de exploração da mão-de-obra (negra ou palestina, no caso), que continuaria sendo barata,  mesmo se tendo certos direitos reconhecidos. Estaria em questão apenas a otimização de custos – mesmo porque o comércio de armas, motor principal de economia, não seria interrompido em nenhuma hipótese.
Ambas as perspectivas partem de premissa pertinentes mas  insuficientes. Se há hoje mais espaço par o pluralismo ideológico, também  crescem as desigualdades, a concentração de renda e o racismo.
A Guerra da Bósnia é um exemplo de como o  fim de uma ditadura (comunista) desembocou não na democracia, mas na matança. A luta em Ruanda e Angola mostra como as guerras entre grupos étnicos recrudesceram na África, à medida que o continente foi abandonado à própria sorte com o fim da Guerra Fria. Finalmente, o neonazismo europeu coloca novas indagações.
Para além de quaisquer outras questões, o racismo tem uma dimensão de natureza psicossocial.
Refere-se à incerteza que se apoderou do mundo com a falência das certezas e das ideologias que prometiam felicidade. O mundo perdeu parâmetros do “bem” e do “mal”, do “certo” e do “errado” fornecidos pela Guerra Fria. E não é só isso. O extraordinário  avanço da tecnologia e as novas, rápidas e incessantes descobertas da ciência contribuem para mudar radicalmente a face do planeta e o ritmo da vida. O tempo é cada vez mais rápido, o espaço cada vez menor. Nesse mundo tecnológico, ideologicamente inseguro e economicamente instável, nenhuma fronteira – geográfica, cultural ou racial – garante a identidade a qualquer grupo.
Daí a necessidade de construir psicológica e culturalmente a figura do Outro, aquele que represente tudo o que não sou, e que, por contraste, me propicie a sensação de pertencer a uma comunidade.
Talvez não saiba o que significa ser branco na África do Sul, mas me identifico com todos os não negros.
Não sei muito bem no que devo acreditar pelo fato de ser israelense, mas sei que sou diferente “deles”, os palestinos. A mesma lógica de exclusão se aplica à classe média branca brasileira com relação a negros e nordestinos. Os 111 assassinados no Carandiru (SP) eram estrangeiros ao mundo da elite branca, por muito horror que o massacre tenha causado.
Aparente paradoxo, nunca o planeta foi tão unificado pela tecnologia, mas nunca uma época foi, potencialmente, tão hostil a tudo o que represente o Outro, o estrangeiro. Não há uma fórmula simples para rotular acordos em Israel e África do Sul, da mesma forma que não há uma causa única para a guerra da Bósnia ou Ruanda. A questão racial tornou-se o problema em torno do qual se equaciona o equilíbrio entre os Estados neste fim-de-século. A vida demonstra a correção de Hanna Arendt: a raça não é o começo da humanidade, mas o seu fim. Às vésperas de um novo século, a humanidade enfrenta problemas raciais da mesma natureza que aqueles  que afligia há cem anos.

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