Em relato exclusivo, o padre Pedro Ruquoy, descreve a vida repleta de miséria no Haiti, e critica a política “imperialista” de Washington, que “patrocinou o golpe de 1991” e agora planeja invadir para “assumir o controle” do país.
Sábado, 9 de julho – toda a cidade de Porto Príncipe, capital do Haiti, está em festa. Gritos de alegria brotam em todos os cantos, manifestações com tambores tomam as ruas dos bairros populares. Centenas de milhares de pobres parecem ter-se esquecido da repressão: o Brasil vence a Holanda na disputa da Copa do Mundo. As manifestações se fazem cada vez mais ruidosas, cada vez mais animadas. De repente, as canções se transformam em slogans contra a ditadura militar, de apoio ao presidente Aristide: “Abaixo Cedras! Viva Titid!” (Titid é o nome carinhoso que a população dá ao presidente deposto por golpe chefiado por Cedras em 1991 –NR). Então, soam os disparos. Como selvagens cães de guerra, aparecem os militares prontos para morder. As pessoas fogem para todas as direções. Vários caem feridos. Outros conseguem refugiar-se numa igreja. Alguns dias mais tarde, no bairro de San Martín, aparecem três cabeças decepadas. Uma delas ostenta um chapeuzinho com a inscrição “Viva o Brasil!”.
No mesmo sábado, numa das prisões mais temidas do Haiti, seis refugiados aguardam o veredicto.
Uma semana antes, haviam fugido de La Vache, uma ilha ao sul do Haiti. Tentaram escapar a bordo de um frágil bote, na companhia de muitos outros camponeses cansados de viver escondidos.
Após dois dias de luta contra as ondas do mar, foram interceptados por um barco norte-americano e entregues à polícia haitiana. E agora estão ali, na cela, esperando a palavra do coronel. É a primeira vez que se encontram em Porto Príncipe. Estão em silêncio. Seus olhos refletem a angústia. Há cinco dias não comem nada. Um deles contempla o retrato de sua mulher e de seus três filhos pequenos.
Durante a última semana de junho e a primeira de julho, mais de 10 mil haitianos foram presos no mar pelas tropas norte-americanas. No povoado de Pestel, três religiosos – dois padres franciscanos e uma freira – se preparam para realizar um gesto de solidariedade com esses milhares de haitianos sedentos de liberdade. Na quinta-feira, 21 de julho, vão embarcar a bordo de outro pequeno bote com outros haitianos. “Não queremos fazer grandes discursos, mas com o coração no noroeste do Haiti, contou-me que civis armados invadiram a casa onde estava sendo velado o cadáver do sr. Jeudiyis Desamours. Dispensaram os familiares do defunto. Beberam o café preparado para os visitantes. Golpearam o cadáver e roubaram sua “lanterninha eterna” (costume haitiano segundo o qual a família do defunto deve acender uma lanterninha antes e alguns dias depois dos funerais para guiar o defunto em sua longa viagem).
A repressão é selvagem e além disso a miséria é insuportável: nas ruas de Porto Príncipe, senhoras andam com latas d’água para vender nos bairros populares, onde se quer há água potável.
Um copo vale 3 gourdes (20 gourdes vale 1 dolar).
Em face desta situação, as autoridades de fato não se cansam de difundir mentiras. Ultimamente, Charles David, o ministro de fato das Relações Exteriores, afirmou que os partidários de Aristides compraram cadáveres no hospital geral para atirá-los à rua com objetivo de manchar a imagem do Haiti. “Cada cadáver custa US$ 60”, afirmou o ministro. De acordo com ele, a imprensa internacional e as embaixadas inventaram o clima de violência, que não existe. Tudo seria uma imensa comédia. Uma comédia! Deve-se, antes, falar de tragédia. E o maestro principal desta tragédia está sentado no Império do Norte. Os grupos populares do Haiti estão convencidos de que o golpe de Estado de 1991 foi orquestrado por setores do poder dos Estados Unidos para destruir o novo modelo de democracia participativa que estava nascendo nesta ilha do Caribe.
Sem dúvida, o governo norte-americano não poupou críticas aos golpistas, nem declarações em que manifesta seu desejo de retorno do presidente Jean-Bertand Aristide. Os Estados Unidos ameaçam, agora, invadir o Haiti, tendo como pretexto a necessidade de restaurar a democracia: 14 barcos de guerra americanos rodeiam a pequena Haiti, mas o general Cedras continua impondo condições: “A comunidade internacional deve reconhecer o governo de Emile Jonassaint”. Quatorze barcos de guerra rodeiam o Haiti, mas as autoridades de fato expulsam os membros de missões de ajuda civis e as Nações Unidas obedecem tranqüilamente.
A intervenção militar parece iminente. As organizações populares do Haiti duvidam que o objetivo da invasão seja mesmo restaurar a democracia.
Será, antes, o último ato da tragédia haitiana: a destruição dos grupos populares e o controle total do Haiti por parte do imperialismo americano. A primeira Revolução livre da América latina agoniza. Há 190 anos, Haiti era um farol para a América latina em sua luta pela liberdade. Hoje, vive o maior pesadelo de sua história. Está esperando gestos concretos de solidariedade, que a ajude a voltar-se para o sol da libertação, que, cedo ou tarde, haverá de brilhar novamente.
Pedro Ruquoy nasceu na Bélgica, em 1952.
Em 1975 chegou à República Dominicana como membro da congregação missionária Imaculado Coração de Maria. Estudou Teologia no México e foi ordenado padre em 1993. Foi diretor da Rádio Enriquillo, uma emissora comunitária na República Dominicana.
Durante o golpe no Haiti, essa emissora foi fundamental na organização da resistência democrática e divulgação de notícias sem censura. Há um ano, coordena o Centro Puente, que busca solidariedade entre os povos que habitam a ilha de Quisqueya: Haiti e República Dominicana.
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