Casa Branca sufoca sonho de “potência regional
De Getúlio Vargas a Itamar Franco, as eventuais tentativas brasileiras de exercer uma política externa independente, afirmando uma posição de liderança na América Latina, foram abortadas por Washington
Newton Carlos
6 de março de 1953: o presidente da Argentina, Juan Perón, escreve a Getúlio Vargas dizendo ser “necessário nos unir diante de futuro incerto”.
Vargas responde, lamentando “dificuldades que impedem o início de entendimentos”. Em fevereiro de 1954, seis meses antes do suicídio de GV, o embaixador americano no Brasil filtra para os jornais documento secreto de seu governo analisando os ‘‘riscos para as democracias do continente’’ de uma aliança argentino-brasileira anti-Washington. Em setembro de 1955, cai Perón.
Na época, a Argentina tinha peso (42% do total das linhas férreas sul-americanas e 55% dos automóveis), e ainda desfrutava dos saldos do não envolvimento direto na Segunda Guerra. Perón ofereceu a Vargas 1,5 milhão de toneladas de trigo. Os americanos contaram com aliados entre diplomatas e militares brasileiros para bloquear a aliança. Argumentos não faltavam. O Brasil havia lutado contra o nazismo, com o qual a Argentina flertou. Mas importou bastante o fato de que se tratou de iniciativa argentina, em oposição, portanto, à “vocação” brasileira de potência regional.
O fracasso da empreitada peronista não sepultou sentimentos favoráveis a que os países latino-americanos assumissem maior independência face a Washington. Reações iradas à visita do então vice-presidente Richard Nixon, em 1958, abriram espaço para que o Brasil tomasse a iniciativa, com a Operação Pan americana. ‘‘É preciso criar algo mais profundo e algo mais duradouro em favor do nosso destino comum”, escreveu, em maio de 1958, o então presidente Juscelino Kubitschek, ao chefe de Estado americano Dwight Eisenhower.
Em outra carta, ao presidente Arturo Frondizi, da Argentina, JK defendeu a necessidade de melhorar as condições de vida de “todas as zonas subdesenvolvidas da nossa comunidade”. Caberia a Jânio Quadros, sucessor de JK, avançar no terreno ainda virgem da independência diplomática. Em sua primeira e única mensagem ao Congresso, Jânio, embora registrando que “a posição ideológica do Brasil é ocidental e não variará”, pregou a “ neutralização do conflito ideológico”, disse que o Brasil “não pode ignorar a vitalidade e o dinamismo dos Estados socialistas” e falou dos “pontos de contato entre Brasil e os povos da África e Ásia”. Além de condecorar “Che” Guevara, herói da Revolução Cubana e inimigo de Washington, encontrou-se com Frondizi, em Uruguaiana, numa reunião impregnada de fantasias de independência. JQ renunciou, em agosto de 1961, sete meses após sua eleição, alegando estar submetido a pressões ‘‘terríveis’’.
João Goulart, seu sucessor, votou contra a expulsão de Cuba da OEA, colocou o Brasil na linha de frente do Grupo dos 77 (dos países subdesenvolvidos da Ásia, África e América Latina), e contribuiu de modo decisivo para que se instalasse a Unctad (conferências de comércio e desenvolvimento), que acirrou o confronto norte-sul. Mas, o golpe de 1964 depôs Goulart e trouxe o “alinhamento automático”: o que é bom para Washington é bom para o Brasil, disse, textualmente o ex-chanceler Juracy Magalhães. Cuba foi expulsa da OEA, com o voto do Brasil, o único grande país latino-americano a mandar tropas para a República Dominicana, invadida em 1965 pelos Estados Unidos em nome da contenção do comunismo.
O governo Costa e Silva (março de 1967 a agosto de 69) traria surpresas. O Brasil foi dos mais ativos na convocação da conferência só de países latino-americanos em Vina del Mar (Chile), em março de 68. O “Consenso de Vina del Mar” afirmava a necessidade de “modificações importantes nas relações com os demais membros da comunidade internacional”.
Dizia que os interesses latino-americanos “não são idênticos aos dos Estados Unidos, e tendem a ser progressivamente contraditórios”. O governo Médici (outubro de 69 a março de 74) foi caracterizado pela paralisia e isolamento.
Com Geisel (março de 74 a março de 79),instalou-se o “pragmatismo responsável”, o Brasil como “país do Ocidente e do Terceiro Mundo”.
Criou-se um “dual track” (duas vertentes, Ocidente e Terceiro Mundo) a partir de conflitos com os Estados Unidos, sobretudo na disputa de mercados árabes de armas. Sedimentaram-se fantasias atômicas. O Brasil, certo de que os petrodólares financiariam o desenvolvimento de sua indústria bélica, concluiu um acordo de cooperação nuclear com a Alemanha e denunciou o tratado de assistência militar de 1952 com Washington. O Brasil não podia continuar “imóvel” diante da recusa americana a repassar “tecnologia sensível” para armas convencionais e nucleares. Mas o governo seguinte, do general Figueiredo (março de 79 a março de 85), viu-se envolvido com a crise da dívida. O discurso diplomático quase se limitou a criticar “rígidas políticas de austeridade que possam destruir bases econômicas dos países latino-americanos” e a denunciar o “baixo nível de cooperação internacional”.
O governo Sarney, a partir de 1985, definiu como prioridade uma política latino-americana, sobretudo de relações com a Argentina, com a qual foram assinados 10 protocolos de cooperação, abrindo o processo de integração que daria no Mercosul, e acordo de inspeção recíproca de instalações nucleares.
E também de entusiasmo com a China. O governo Collor iniciou a abertura do mercado nacional (incluindo o de informática), e admitiu que o Brasil tinha planos para fazer testes nucleares (no ‘‘buraco’’ da base aérea de Cachimbo, por ele fechado).
Os governos de Itamar e Cardoso reiteraram e reiteram a prioridade das políticas de integração mais amplas, da criação de “vastas áreas de livre comércio”, o que, em última instância, confluiria com os novos interesses americanos, nos quais a geoeconomia substitui a velha geopolítica.
Boletim Mundo Ano 3 n° 4
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