domingo, 23 de janeiro de 2011

Editorial- Argentina

É quarta-feira. O oficial entra no cárcere onde estão os presos políticos e informa que eles serão transferidos para um presídio comum, no sul do país. Os presos respiram com alívio. A maioria é formada de jovens, alguns ainda adolescentes; mas entre eles há também velhos com ar de aposentados e até donas-de-casa que, em outras circunstâncias, certamente ofereceriam chá aos convidados. O alívio vem da esperança de que eles finalmente deixarão de ser torturados, humilhados, ameaçados como vem acontecendo todos os dias há uma eternidade.
O oficial-médico diz, então, que eles devem tomar uma vacina antes da viagem. Eles aceitam, alegremente.
Triste equívoco. Será a última viagem de suas vidas.
A ‘‘vacina’’, na verdade, é um poderoso sedativo.
E eles não serão transportados ao sul, mas sim atirados de um avião ao mar, para ali encontrar a morte.
Tudo isso aconteceu, semana após semana (sempre às quarta-feiras), entre 1976 e 78, no auge da ditadura.
O esquema, que eliminou pelo menos 2 mil presos, foi revelado a Horacio Verbistsky, do jornal Página 12 de Buenos Aires, pelo ex-capitão-de-corveta Adolfo Scilingo, ele mesmo encarregado de alguns ‘‘vôos’’. O depoimento foi transformado no livro El Vuelo. Scilingo era da Escola de Mecânica da Armada (Esma), conhecido centro de tortura que nada ficava a dever a similares na Alemanha de Hitler.
Mas estes fatos não pertencem ao passado. O presidente Carlos Menem, ao tomar conhecimento do livro, disse que Verbitsky está apenas querendo promover- se, e tentou desacreditar Scilingo. Atitude coerente de quem anistiou os generais responsáveis pelo desaparecimento de 30 mil pessoas entre 1976 e 1983.
“Houve uma guerra suja e, das partes envolvidas, uma lutaram em defesa da lei e outras violaram essa lei.
Eu creio que a lei triunfou”, disse Menem.
Ideologias à parte, nenhum ser humano -menos ainda um presidente- pode defender a ‘‘lei’’ da barbárie, do assassinato, da desonra. Ao fazê-lo, Menem revela-se um pigmeu moral. É indigno de seu posto, e de sequer dirigir a palavra às heróicas Madres de la Plaza de Mayo, cujos filhos desapareceram por acreditar que lutavam pelo bem da nação argentina.

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