terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Diário de Viagem- Memórias do Paraíso

A crise européia coloca questões vitais para os suecos, habituados a uma vida calma e abastada, comenta José Arbex Jr.
O carro, cheio de compras distraidamente jogadas no banco traseiro, permanece aberto em pleno centro da capital. Centenas de pessoas passam, mas ninguém pensa em roubar a mercadoria “dando sopa”. Medo da polícia? Improvável. Nem há policiais por perto. As lojas em volta nem instalaram sistemas contra roubo. E não há pedintes na rua.
Estas cenas, do cotidiano de Estocolmo, convidam a refletir sobre um país que apenas começa a sentir alguns dos efeitos da crise que assola os “ricos”. Qual o segredo da Suécia? A resposta certamente não agradará aos neoliberais de plantão, que receitam o mercado como panacéia de todos os males e confundem estatismo – qualquer estatismo – com atraso e miséria.
A Suécia é um dos países mais “estatistas” do mundo. A política tributária, construída ao longo de décadas de hegemonia política do Partido Social- Democrata, determina uma carga de impostos que oscila entre 40% e 60% dos rendimentos. Mas isso se reflete numa excelente infra estrutura de bens e serviços sociais. É o “Estado de Bem-Estar Social”.
Cada um dos 8,5 milhões de suecos tem estudos e saúde plenamente garantidos. Ricos e pobres têm, em média, a mesma estatura. Isso significa que há décadas não diferença substancial na qualidade de alimentos básicos à disposição de uns e outros.
O sistema estatal de seguro-desemprego parece gozação se comparado ao brasileiro. Ao ser demitido, o trabalhador sueco tem a garantia de que durante o primeiro ano de desemprego, receberá, mensalmente, o equivalente a 90% de seu último salário. No segundo ano 80%, no terceiro 70% e no quarto 60%. Só então é que deixará de receber, mas continuará desfrutando da assistência e de todos os direitos sociais.
O “estatismo” não impede o florescimento da economia privada (o PNB per capita é de US$ 26 mil, comparado com US$ 22 mil dos EUA), que muitas vezes recorre ao subsídio público em nome da democracia. É o caso de pequenos jornais que têm assegurado pela Constituição o direito de subsídios para competir com jornais poderosos.
Considera-se que não há perigo maior do que o monopólio da informação, e se os impostos servirem para impedi-lo, tanto melhor.
Este é o mais significativo componente do “segredo sueco”: convicção democrática e sentimento de independência nacional baseados na tradição religiosa (luterana). Esse sentimento permitiu que a Suécia se mantivesse neutra na 2a Guerra, preservando-se da destruição (isso explica a sólida posição que sua economia passou a ocupar no pós-guerra). A mesma convicção levou o país a apoiar os comunistas do Vietnã na guerra com os EUA, causando uma breve ruptura diplomática com Washington (1972- 74). À época, o premiê era social-democrata Olof Palme, assassinado em 28 de agosto de 1986, quando estava na fila do cinema de Estocolmo.
A tolerância para com os imigrantes é outra característica. Nesses dias de xenofobia, a direita nacionalista sueca está em recuo. Os imigrantes são bem recebidos, embora as restrições à sua entrada sejam crescentes. Cada cidade tem um Comitê de Imigrantes que zela para que todos tenham seus direitos preservados.
E a crise? Pergunte a um sueco, e ele se queixará.
Mas é difícil que um brasileiro entenda como crise uma inflação anual que não chega a 3% e desemprego de 5%. Mas discute-se muito, principalmente quando o tema é aderir ou não à União Européia (haverá um plebiscito em novembro). Os favoráveis à adesão dizem que o país não pode isolar-se da Europa rica. Os contrários argumentam que a Suécia, aderindo, estaria abrindo mão de sua neutralidade, e acabaria “importando” problemas.
A cúpula social-democrata é favorável à adesão, embora o PSD esteja dividido, como a própria sociedade. O PSD perdeu as eleições em 1991, após três décadas no governo, para uma coligação conservadora que tinha um programa “privatizante”.
Mas recuperou parte de seu prestígio com a defesa do “estatismo”.
O componente mais grave da “crise” sueca não é imediatamente econômico. É um sentimento de monotonia responsável pelos mais altos índices de suicídios do mundo. A Suécia racionalizou a vida em excesso. Não há lugar para o imprevisto. O caminho de cada um está praticamente definido, do berço ao túmulo. Um sintoma de obsessão pela ordem é o respeito religioso com horários. Tudo funciona como máquina. Um atraso de 15 minutos, mesmo entre namorados, pode ser tomado como insulto.
O extraordinário crescimento do funcionalismo público a partir dos anos 70 (seu número foi multiplicado por cinco, para somar quase 1,5 milhão de empregados) agravou a situação psicossocial de uma vida cinzenta e regulamentada em demasia pela máquina estatal.
Em qualquer hipótese, a Suécia chegou muito mais perto da sociedade planejada, igualitária e abastada pretendida por Marx do que qualquer Estado socialista chegou a sonhar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário