Desde que a China foi subitamente jogada numa modernidade cujo mestre é o Ocidente, ela nunca mais foi capaz de ocupar um lugar condizente com seu tamanho. Embora mais ambicioso que seu predecessor nacionalista, o regime comunista não conseguiu nem a transição ao comunismo nem a ascensão à categoria de grande potência. Desde a primavera de 1989, a China oscila entre o progresso e o obscurantismo. A chave do futuro reside na sucessão de D eng Xiaoping. Enquanto estiver vivo, nenhuma opção clara pode ser tomada e a crise chinesa degenera lentamente. Somente sua mor te abrirá os horizontes.
(Jean-Luc Domenach, Folha de S.Paulo, World Media: A Nova Desordem Mundial, 21.dez.90, pág. 6)
Teoricamente, a China não enfrenta uma “questão sucessória”, já que a aposentadoria de Deng foi proclamada três vezes na década de 80. Jiang Zemin, o sucessor designado, acumulou os cargos de chefe de Estado e secretário-geral do PCC. Entretanto, também Mao havia designado o seu sucessor, que não era Deng. Além de Jiang Zemin, o primeiro-ministro Li Peng, o antigo chefe do PCC em Xangai, Zhu Rongji e o presidente do Congresso Nacional do Povo (o “Parlamento” decorativo), Qiao Shi emergem como eventuais pretendentes. Este último, um burocrata de 70 anos, concentra as esperanças de reformas políticas dos observadores otimistas, que recordam a sua abstenção na votação da decretação da Lei Marcial, em 1989, e sublinham as iniciativas recentes de promoção de debates mais livres no Congresso.
A abertura econômica varreu da paisagem chinesa o coletivismo dos tempos maoístas. Na década de 90, a economia do país registra um crescimento explosivo, com taxas persistentes superiores a 10% ao ano. O PIB chinês, ajustado pelos padrões reais de poder de compra, saltou para a terceira posição no mundo, atrás dos Estados Unidos e do Japão. Apenas no ano passado, registrou-se uma infusão de mais de 30 bilhões de dólares de capital estrangeiro na economia chinesa, praticamente a metade de todos os investimentos internacionais fora dos países ricos. O “milagre chinês” confirma a condição de potência internacional e amplia a importância do país no mundo.
Há três décadas, a China de Mao rompeu com a União Soviética para expandir a sua influência continental pelo interior da Ásia. O programa nuclear e as tensões de fronteiras com soviéticos, indianos e vietnamitas assinalaram a problemática projeção do poder de Pequim. A abertura redirecionou a China para o Pacífico e substituiu o ruído do confronto estratégico pela melodia da cooperação econômica. Na Bacia do Pacífico, o Japão e os Estados Unidos tornaram-se parceiros cruciais para o comércio internacional chinês. Formosa e Hong Kong, as “Chinas do exterior”, passaram a funcionar como portas de entrada dos investimentos estrangeiros. A reviravolta na direção do leste agudiza os contrastes internos.
Em 1993, a miséria no campo gerou pelo menos 830 episódios de revolta envolvendo mais de 500 pessoas; 21 casos envolveram mais de 5 mil. A ampliação das desigualdades regionais deixa entrever o cenário da fragmentação do país.
Essa hipótese, a mais sombria, não está descartada no momento em que o imperador vermelho deixa a cena para sempre.
O legado do último imperador vermelho
Transição, na China, significa turbulência.
Há quase duas décadas, quando morreu o “Grande Timoneiro” Mao Tsétung, o surdo embate que se esboçava no interior dos círculos dirigentes transformou-se em uma conflagração entre facções do PCC (Partido Comunista Chinês), que degenerou em manifestações de rua e se prolongou por mais de um ano.
A vitória da facção de Deng Xiaoping, o líder humilhado e marginalizado durante a Revolução Cultural, produziu uma reviravolta histórica e deflagrou a abertura da economia chinesa na direção do mundo ocidental . O desaparecimento de Deng, o último imperador vermelho, pode reabrir a caixinha de surpresas chinesa.
Novamente, a China parte em busca da sua identidade, como Estado e nação. Essa busca, frenética, a conduz a difíceis alternativas. A mais óbvia delas: conservar o totalitarismo do PCC ou arriscar a abertura política? A escolha geopolítica: projetar uma influência estratégica sobre a Ásia continental ou virar-lhe as costas e procurar a integração econômica na orla do Pacífico?
A tensão entre a abertura econômica e o totalitarismo político constitui a encruzilhada chinesa do final de século. Em 1989, o paradoxo verteu sangue, na repressão ao movimento dos estudantes pela liberdade política. A praça da Paz Celestial materializou uma opção pela estabilidade, a qualquer custo. Mas a tensão entre liberdade de mercado e prisão das idéias não pode ser congelado: ele degenera lentamente, corroendo as elites dirigentes, desgastando as instituições de poder,degradando as relações sociais. O desmando e a corrupção, a venalidade descarada dos burocratas representam uma dimensão desse fenômeno. A outra reside na perda insensível mas persistente de autoridade do governo central, que cede parcelas crescentes de poder e autonomia para os dirigentes regionais e locais.
Há muito, a ideologia comunista tornou-se peça de decoração no museu do PCC. Deng ajudou a pregar a tampa do caixão do velho Marx ao estimular as reformas econômicas de mercado por meio da célebre máxima: “Não importa a cor do gato, desde que ele cace os ratos”. Junto com a ideologia, os comunistas chineses abandonaram o fundo de legitimidade histórica que os sustentava, cujas raízes estavam na continuidade da Revolução de 1949. A truculência e o autoritarismo substituíram a ideologia.
Não se sabe até quando o simples exercício da força pode conservar no poder uma casta dirigente esclerosada, que exerce a autoridade no ambiente infiltrado pela economia de mercado .
Tensões regionais ameaçam fragmentar o país
A China continental, segundo a tradição, é um Estado indivisível. Mas, o país é composto por pelo menos três conjuntos regionais distintos:
1 - A China Oriental ou marítima, industrializada, com importantes centros urbanos, grande concentração populacional e foco original da etnia majoritária do país, os han.
2 - A China Central ou interior, tradicionalmente agrária, pobre e atrasada.
3 - A China Periférica, de ocupação rarefeita e não- chinesa.
A renda pessoal revela as desigualdades. Mesmo excetuando os grandes centros urbanos e industriais, os chineses do litoral oriental ganharam em média 3.677 yuans (US$ 430) no ano passado, contra 1.707 na China Central e apenas 1.328 nas regiões ocidentais. A China marítima cristalizou sua condição de maior importância econômica e demográfica a partir do século XIX, quando concessões coloniais privilegiaram as principais cidades costeiras como Xangai e Cantão. A posterior ocupação japonesa, nos anos 30, e o regime comunista implantado em 1949, não modificaram o cenário demográfico estabelecido anteriormente.
A instalação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), em 1984 acentuou ainda mais as assimetrias regionais e ensejou crescimentos desiguais no interior da própria região. Assim, na porção setentrional, a Manchúria continua sendo uma área onde a indústria pesada e os interesses japoneses são tradicionais. Mais ao sul, a região que tem Xangai como centro, dinamiza e diversifica cada vez mais suas relações comerciais com várias partes do mundo. A porção costeira meridional, tendo Cantão como pólo, estreita seus laços com Hong Kong, Taiwan e com a importante diáspora chinesa no sudeste asiático.
A China interior continua mantendo sua tradição agrária. Cada vez mais, comporta-se como reservatório de mão-de-obra para os centros urbanos. É nessa parte do país que melhor se identificam os grandes cinturões agrícolas que praticamente acompanham os vales dos rios, especialmente o Iang Tsé (a chamada “China do arroz”) e o Huang Ho (a “China do trigo”).
Por último, existe a China periférica, que compreende mais de 60% da área do país, concentrando apenas um pouco mais de 10% da população total e menos de um décimo da renda. É uma China essencialmente não-chinesa, apesar dos recentes estímulos migratórios promovidos por Pequim.
Três áreas merecem destaque nessa região: o Tibet ou Xizang na porção sudoeste, o antigo Turquestão chinês ou Xinjiang-Uigur a noroeste, e a Mongólia Interior ou Nei Menggu junto às fronteiras da Mongólia.
O Tibet, ocupado desde o início dos anos 50, vem tentando se livrar da tutela chinesa desde então mas, sem sucesso. O Xinjiang-Uigur é habitado em grande parte por povos semi-nômades de cultura turca e religião islâmica. Por fim, a Mongólia Interior possui tribos mongóis que praticam há séculos o pastoreio nômade e semi-nômade.
Nessa China periférica é que se localiza a maioria dos 56 grupos étnico-nacionais reconhecidos pelo governo central mas que perfazem menos de 10% da população. Mais de 90% dos 1,2 bilhão de habitantes da China correspondem à etnia han.
Os diferentes ritmos de crescimento regional, resultantes do sucesso das ZEEs, bem como a existência de amplos espaços ocupados por populações não chinesas, podem levar a importantes tensões separatistas. Isso é no mínimo preocupante para um país que, através dos tempos, tem tido rivalidades persistentes com alguns de seus vizinhos, possui armas nucleares e pretensões nunca abandonadas de ser uma potência continental.
Revista Mundo Ano 3 n° 3
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