quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Jogo de Potências sela o fim do pluralismo étnico na Bósnia

“Grande Sérvia” e “Grande Croácia” erguem-se sobre os escombros da Bósnia, destruindo a convivência cultural e alimentando os rancores balcânicos
O drama está chegando ao fim.
Depois de cinco anos de guerra, a Bósnia multi étnica desaparece. O seu território original, submetido a ondas sucessivas de “limpeza étnica”, esvazia- se da pluralidade cultural que entrelaçava no mesmo espaço geográfico o rendado complexo  de muçulmanos, sérvios e croatas. A unidade política da Bósnia biparte-se segundo as linhas de confrontação militar entre sérvios bósnios (apoiados pela nova Iugoslávia) e as forças regulares da Croácia. O governo bósnio de Sarajevo, reduzido a uma franja de terras da Bósnia central, assiste impotente ao desmantelamento do país.
Há cinco anos, o panorama era diferente. A guerra estalou na antiga Iugoslávia em conseqüência das declarações de independência da Eslovênia e da Croácia. Em seguida, a declaração de independência da Bósnia-Herzegovina cimentou o projeto sérvio de constituição de uma “Grande Sérvia”. O governo de Belgrado estimulou as lideranças sérvias da Bósnia e da Croácia a promover a “limpeza étnica” nos territórios conquistados, expulsando populações muçulmanas e croatas. O projeto, conduzido a partir do controle sérvio sobre o antigo Exército Federal Iugoslavo, previa a futura unificação dos territórios conquistados na Bósnia e Croácia com a nova Iugoslávia.
A Bósnia multi étnica transformou-se no principal obstáculo ao projeto da “Grande Sérvia”. A resistência das forças do governo de Sarajevo e a interposição das forças de paz da ONU (os “capacetes azuis”) adiaram o desenlace, congelando por mais de dois anos as linhas militares. A declaração, pelo Conselho de Segurança da ONU, de “áreas de segurança” em torno das cidades bósnias de Sarajevo, Srebrenica, Zepa, Gorazde, Tuzla e Bihac colocou um limite temporário na estratégia da “limpeza étnica” e conferiu um sopro de vida ao Estado multi étnico bósnio.
Nessa fase intermediária da guerra, a inação no campo de batalha desviou as atenções para o macabro baile diplomático das potências. Em 1993, a ONU e a UE (União Européia) patrocinaram dois planos de paz fracassados, ambos baseados na idéia de reorganização da Bósnia em entidades étnicas autônomas. A comunidade internacional começava a se render à lógica da “Grande Sérvia”, oferecendo a Bósnia multi étnica em sacrifício.
O embargo de armas, decretado desde o início do conflito, atingia unilateralmente o governo bósnio, já que os sérvios dispunham do arsenal do antigo Exército iugoslavo e dos fornecimentos de combustíveis, abertos ou velados, da nova Iugoslávia. Em 1994, as potências começaram a fazer o seu jogo. A Rússia, que ensaiava o retorno a uma diplomacia mais agressiva, reafirmou a sua tradicional aliança com os sérvios, bloqueando as perspectivas de uma ação internacional contra Belgrado. Os Estados Unidos, tolhidos pela decisão de não contribuir com tropas de paz em terra, estimularam a constituição de uma Confederação Bósnio-Croata, elegendo o Estado croata como seu aliado na contenção do poderio de Belgrado.
A fase atual do conflito delineou-se após o encerramento da trégua de inverno, patrocinada pela missão do ex-presidente americano Jimmy Carter em dezembro de 1994. A impotência ocidental materializou-se nas divergências táticas que separaram os Estados Unidos dos aliados europeus.
As propostas de Washington, de bombardeios aéreos da Otan contra os sérvios, foram bloqueadas por franceses e britânicos, que temem pela sorte de suas tropas em terra. Em junho, a tomada de centenas de “capacetes azuis” como reféns pelos sérvios deflagrou a crise das operações da ONU e da Otan. Os europeus passaram a encarar a hipótese humilhante da retirada das forças de paz, ao mesmo tempo que enviaram uma “Força de Reação Rápida” franco-britânica destinada, teoricamente, a defender os “capacetes azuis”, mas jocosamente denominada “Força de Não-Reação Não Tão Rápida”.
Nas últimas semanas, o quadro adquiriu ritmo acelerado. Os sérvios tomaram as “áreas de segurança” de Srebrenica e Zepa, repetindo, em escala ampliada, as operações de “limpeza étnica” do início da guerra e ameaçando estabelecer um domínio completo sobre o leste da Bósnia.
Pouco depois, em manobra surpreendente, o avanço do Exército croata pela Bósnia central e o cerco aos sérvios da Krajina descerrou a hipótese da ocupação croata de todo o norte da Bósnia. Ninguém duvida que a ofensiva é sustentada diretamente por Washington. As operações em larga escala da nova fase do conflito parecem apontar para o desenlace: a configuração, às custas da Bósnia, de uma “Grande Sérvia” e de uma “Grande Croácia”. A primeira, aliada da Rússia, controlaria o leste bósnio e, talvez, parte de Sarajevo. A segunda, aliada dos Estados Unidos e das potências ocidentais, controlaria indiretamente o restante da Bósnia. Os dois novos Estados estabeleceriam uma situação de equilíbrio de poder na antiga Iugoslávia, contrabalançando-se mutuamente.
Esse horizonte representa a dissolução integral da antiga Iugoslávia, que, bem ou mal, baseou-se na convivência étnica e na diversidade cultural.
Os muçulmanos bósnios, expulsos das áreas ocupadas pela “Grande Sérvia”, estarão condenados a viver como estrangeiros na “Grande Croácia”. Os novos Estados étnicos, erguidos sobre a intolerância, são o oposto do que foi a Bósnia. Esses joguetes balcânicos das potências mundiais configuram estufas do rancor e do ódio e prenunciam novas guerras na parte mais infeliz da Europa.
Boletim Mundo Ano 3 n° 4

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