Linha do rio Grande demarca fronteira de tensões entre a América Anglo-Saxônica e a América Latina, condiciona integração do México ao Nafta e sofre contestação de fluxos migratórios
A A m é r i c a Anglo-Saxônica e América Latina: as expressões, consagradas pelo uso, sintetizaram uma linha de tensão geopolítica e econômica que separa os EUA dos vizinhos ao sul do rio Grande.
América Anglo-Saxônica foi a metáfora desse contraste entre os EUA e a América pobre. O Canadá, o outro integrante da “Saxônia”, não passa – diz Darcy Ribeiro – de feitoria industrial ianque com uma classe dominante gerencial que acabará por fundi-lo ao “colosso do norte”.
As relações entre o “colosso do norte” e os vizinhos do sul exibiram, ao longo da história, forte ambivalência. A Revolução Americana de 1776 forneceu idéias que impulsionaram as guerras de independência da América hispânica, conduzidas por Simon Bolívar e San Martín, e para a revolução dos escravos no Haiti de Toussaint L’Ouverture. Só o Brasil, imperial e escravista, fez de sua independência a negação das idéias americanas e a afirmação da Europa aristocrática que desaparecia.
A Doutrina Monroe, de 1823, fingiu cimentar a unidade de propósitos americana, confirmando o engajamento dos EUA na defesa da liberdade das nações do Novo Mundo. Mas era o começo de uma grande mentira, que se desdobrou pelas décadas: A América para os americanos constituía a senha ideológica para uma dupla operação geopolítica, de cisão – entre a América e a Europa – e de subordinação – da América aos Estados Unidos. Muito mais tarde, ao longo do meio século de Guerra Fria, consolidou-se a bipartição do continente ao longo da linha de fronteira (econômica, geopolítica, demográfica, cultural e simbólica) do rio Grande. Washington, engajada na sustentação da Europa Ocidental e na diplomacia global de contenção da URSS, subordinou e marginalizou os vizinhos latinos.
A América Latina definiu-se pelo que não era: Estados Unidos.
O fim da Guerra Fria e da polaridade Leste/Oeste complica as relações entre as Américas. Washington lança um novo olhar sobre a América Latina e começa a operação de redefinir o lugar do subcontinente na política mundial.
Em junho de 1990, o ex-presidente Bush lançava a Iniciativa para as Américas, a meta de uma macro zona de livre comércio “do Ártico à Terra do Fogo”. Acionava também a engrenagem do Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), assinado em agosto de 1992 com o Canadá e México.
Mais ainda que Bush, Bill Clinton encara sua política externa na moldura criada pela configuração de blocos concorrentes na Europa e Bacia do Pacífico. A América Latina, a única região que gera saldos positivos para o comércio exterior deficitário dos EUA, emerge como alvo de suas exportações. Clinton enfrentou as resistências do Congresso e saboreou um raro êxito ao conseguir a aprovação do Nafta, no ano passado.
No início de 1994, socorreu o México com uma linha de crédito de US$ 6 bilhões, resgatando o parceiro abalado pela revolta indígena de Chiapas e pelo subseqüente assassinato do candidato presidencial oficial.
Uma das prioridades da política continental de Washington é a estabilização da fronteira centro-americana e caribenha, submetidas às pressões da América Latina.
Além do boat-people haitiano, Washington enfrenta crônica migração de mexicanos, que se instalam no sudoeste do país. Esse movimento – ironicamente, uma espécie de “reocupação” dos territórios perdidos pelo México em 1845-48 – revela a porosidade da fronteira. O Haiti não é só aqui: está em todo lugar.
Eleições não são um espetáculo emocionante para o México. O Partido Revolucionário Institucional governa o país há 65 anos. A vitória do candidato governista nas presidenciais de agosto é só outro capítulo de uma crise que se arrasta desde as presidenciais de 1988. O fulcro da crise está na contradição entre o passado e o futuro, tradição e modernização.
O México tradicional – camponês, estadista, burocrático – criou o PRI e sustentou sua elite. A modernização – que integra o país nos fluxos mundializados de capitais – expõe as feridas: o contraste entre riqueza e miséria e a natureza arcaica do sistema político.
O contraste entre riqueza e miséria apresenta-se sob a forma de uma dicotomia entre a região setentrional, que é impulsionada pelos investimentos americanos, e a meridional, onde o México se funde com a América Central. A revolta de Chiapas, em janeiro, acendeu o pavio dessa contradição. A natureza arcaica do sistema político, uma semi ditadura partidária, dissocia a população do poder de Estado. O presidente Salinas de Gotari quis desatar esse nó com a integração ao Nafta. Mas o sonho dá sinais de esgotamento. Seu sucessor pode se tornar o último dos herdeiros da dinastia do PRI.
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