O “milagre mexicano” transformou-se em catástrofe. O repentino desabamento das cotações do peso (a moeda nacional), ao final de janeiro, descortinou o desastre. Pendendo no abismo, o México foi resgatado pela maior operação de salvamento financeiro de todos os tempos. As garantias totais, de 50 bilhões de dólares, correspondentes a quase um quinto do PIB e perto do dobro das exportações do país, mobilizaram os Estados Unidos (20 bilhões), o FMI (17,8 bilhões) e os países do G7, através do Banco de Compensações Internacionais (BI), o banco central dos bancos centrais (10 milhões). Warren Cristopher, secretário de Estado americano, confessou que o resgate, anunciado no primeiro dia de fevereiro, chegou apenas 48 horas antes da bancarrota.
A operação de salvamento acalmou temporariamente investidores e especuladores do mundo inteiro, nervosos diante do iminente fracasso do presidente Bill Clinton em convencer o Congresso a aprovar um pacote um pouco menor (40 bilhões), mas exclusivamente americano. Não era para menos.
A soma envolvida representa mais da metade de todos os créditos liberados pelos Estados Unidos ao longo do Plano Marshall: entre 1948 e 1952, os países europeus receberam algo como 82 bilhões de dólares, em dinheiro de hoje (na época, 13 bilhões de dólares).
No resgate, o FMI ignorou as regras sacrossantas das instituições multilaterais, aprovando em algumas horas um empréstimo muito maior que o permitido pelo seu estatuto.
A crise mexicana revelou as mazelas ocultas do “milagre”, costurado pelo ex-presidente Carlos Salinas de Gortari (1989-1994) de acordo com o figurino internacional dos programas de “ajuste estrutural” do FMI. A abertura da economia e a privatização de empresas estatais, coroadas pelo ingresso do país no Nafta (Acorde de Livre Comércio da América do Norte) escondiam o lado frágil do modelo. A inflação foi vencida às custas de uma política cambial de valorização da moeda: o peso teve seu valor fixado frente ao dólar.
O “peso forte” estimulou as importações, propiciando anos de euforia para a classe média, mas derrubou as exportações. O buraco na balança comercial agravou o déficit na conta corrente, causado pelo pagamento dos juros da dívida externa.
A conta corrente deficitária tinha que ser coberta de alguma forma, a fim de equilibrar o balanço de pagamentos. A saída foi o recurso aos investimentos estrangeiros de curto prazo: para financiar a sua conta corrente, o governo colocou no mercado montanhas de títulos do Tesouro mundo todo adquiriram os papéis mexicanos, garantindo os recursos de que o governo necessitava.
A folia acabou de repente. A dilatação crescente dos déficits em conta-corrente assustou os mercados financeiros. A instabilidade política em Chiapas foi a gota d’água, desencadeando o pânico. A retirada dos investimentos derrubou o peso e deflagrou a crise.
Há treze anos, a história foi outra: naquela época, não houve resgate. Incapaz de honrar os títulos vencidos da sua dívida externa, o México declarou a moratória que inaugurou a crise das dívidas em toda a América Latina. Na crise deflagrada em 1982, os Estados Unidos e os organismos financeiros multilaterais limitaram-se a assistir, por quase uma década, ao espetáculo da estagnação econômica que devastou o subcontinente.
Na última década, a economia mundial avançou muito no caminho da globalização. No extremo oriente, o modelo das economias internacionalizadas dos Tigres Asiáticos difundiu-se para os “novos tigres” que despontam no sudeste do continente. A China aprofundou as suas reformas de mercado, inspirando a Índia a abrir as comportas da sua economia protegida.
Na América Latina e na Europa centro-oriental foram aplicados programas de “ajuste estrutural” do FMI, que também chegaram à Rússia de Ieltsin. As chamadas “economias emergentes”, espalhadas por três continentes, tornaram-se as estrelas do novo surto de crescimento global iniciado há um ano.
Os mercados financeiros das “economias emergentes” forma transformados em campos de pouso de investimentos globais de curto prazo. Os capitais ariscos compraram títulos governamentais e ações nas Bolsas das “economias emergentes”, procurando juros mais altos que os da América do Norte e Europa Ocidental.o “modelo mexicano” – ou seja, elevados déficits combinados com o recurso aos capitais de curto prazo – disseminou-se para a Argentina, a Hungria e as Filipinas. Em menor grau, outras partes da Ásia (China, Tailândia, Indonésia) exibem déficits na conta corrente capazes de comprometer as reservas internacionais, no caso de fuga dos capitais de curto prazo.
A crise mexicana podia ter se espalhado como uma epidemia pelos mercados financeiros das “economias emergentes”, contaminando até países em situação mais estável, como o Brasil. Esse espectro – a reprodução, no final do século, de um desastre mundial como o da Crise de 1929 – continua a pairar sobre a economia global. O desastre, que arrastaria também os países ricos, foi evitado pelo providencial intervenção dos Estados Unidos e do FMI.
Glossário (um pouco de “economês”)
Política cambial: o câmbio é o valor da moeda expresso em outras moedas (geralmente em dólar); a política cambial é a estratégia de definição, ao longo do tempo desse valor.
Balança comercial: saldo entre as exportações e as importações de mercadorias.
Conta corrente: saldo de todas as exportações e importações de mercadorias e serviços e também dos juros recebidos e pagos ao exterior; a balança comercial está incluída na conta corrente.
Balanço de pagamentos: saldo entre todas as entradas e saídas de divisas de um país; em caso de conta corrente deficitária, ele só pode se equilibrar pelo ingresso de investimentos estrangeiros (capitais de curto ou longo prazo).
Reservas internacionais: estoque de divisas (em geral, dólares) de um país, que podem ser usadas em caso de emergência para equilibrar o balanço de pagamentos.
“Economias emergentes” lideram recuperação mundial
Na fracassada tentativa de convencer o Congresso a destinar 40 bilhões de dólares ao México, Bill Clinton pintou um quadro sombrio, evocando o risco da queda das exportações e dos empregos americanos e a ameaça representada por hordas de imigrantes ilegais provenientes do sul. Eram argumentos verdadeiros, mas quase poeris, diante do que estava em jogo: a retomada do crescimento econômico mundial, depois da recessão de 1991-93.
O crescimento econômico mundial, desde a 2ª Guerra, dependeu sempre da força da locomotiva americana. O Plano Marshall (1948-52) foi o trampolim para a reconstrução européia. A reconstrução japonesa foi acelerada pelos gastos americanos nas guerras da Coréia (1950-53) e do Vietnã (1964-73). Nos anos 50 e 60, o consumo nos Estados Unidos alavancou as exportações da Comunidade Européia (CE) e do Japão. As crises dos anos 70 e 80 foram superadas pela recuperação do mercado americano, já então auxiliado por outros mercados do Primeiro Mundo.
Desde o fim da guerra, o comércio internacional cresceu muito mais depressa que as economias nacionais.
Essa trajetória de integração de mercados e globalização reflete um fenômeno crucial: as trocas de mercadorias tornaram-se o combustível mais importante para o crescimento da economia mundial. Mas o Terceiro Mundo nunca foi um ator decisivo para essa dinâmica, já que as suas importações cresciam mais lentamente que as do Primeiro Mundo.
É isso que mudou nos últimos anos. Desde o início da década de 90, as importações do Terceiro Mundo e do antigo bloco soviético aumentaram muito mais do que as do Primeiro Mundo. As “economias emergentes” da Ásia oriental e meridional e da América Latina tornaram-se as responsáveis por essa explosão das importações mundiais. Entre 1990 e 1993, as exportações americanas para o Terceiro Mundo e antigo bloco soviético cresceram a uma média anual de 12%, contra apenas 2% para os países do Terceiro Mundo. No mesmo intervalo, o aumento das importações totais do Terceiro Mundo atingiu 37%, enquanto o total das exportações cresceu apenas 22%. Pela primeira vez, os países do Terceiro Mundo funcionam como a locomotiva da recuperação econômica mundial.
A mudança já embaralhou muitas cartas do jogo econômico global. Atualmente, entre os países do G7 (grupo das sete maiores economias do mundo), as exportações dirigidas para o Terceiro Mundo e antigo bloco soviético representam uma fatia significativa do total. No caso do Japão, esses mercados consomem 48% das exportações totais e no caso dos Estados Unidos 42%.
Mesmo no caso da Europa Ocidental, cujo comércio estrutura-se em torno da União Européia (antiga CE), o Terceiro Mundo e as antigas economias estabilizadas do leste europeu já respondem por cerca de 20% das exportações.
O boom das importações das “economias emergentes” começou no oriente, como produto do crescimento industrial dos Tigres Asiáticos, e se difundiu para a América Latina e o antigo bloco soviético em transição. Mas a capacidade para importar das “economias emergentes” depende da estabilidade das suas moedas e da saúde dos seus mercados financeiros. A fagulha gerada pela crise mexicana ameaça tudo isso, disseminando o nervosismo entre os investidores. Uma retirada maciça de capitais internacionais dos mercados financeiros emergentes derrubaria as moedas, com efeitos devastadores sobre o comércio mundial. É esse risco, de dimensão mundial, que levou Clinton a agir mesmo contra a vontade isolacionista do Congresso.
A expansão contemporânea do comércio internacional e dos fluxos de capital entre o Primeiro Mundo e o Terceiro Mundo exibe inúmeros paralelos com o final do século XIX, quando investimento e intercâmbio também explodiram entre a Europa e os países do Novo Mundo, como os Estados Unidos, a Argentina e a Austrália. A ampliação da riqueza nas novas economias gerava mercados com crescimento vertiginoso para os produtos europeus e oferecia elevada remuneração para os investimentos no exterior. Os superávits financeiros britânicos (…) eram reinvestidos em títulos e ações para financiar a construção de estradas de ferro e outros projetos. Em 1913, o patrimônio britânico no exterior correspondia a 180% do PNB. Este empreendimento pioneiro de globalização descarilhou sob o impacto de duas guerras mundiais, uma erupção de protecionismo e a Depressão dos anos trinta.
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