terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Haiti- Uma Tragédia sem Fim- Washington Articula Intervenção para Estancar Fluxo de Refugiados

Há quase um século, a retórica “democrática” dos Estados Unidos com relação à bacia do Caribe oculta uma geopolítica de defesa de seus interesses como potência hegemônica.
O Conselho de Segurança da ONU votou, a 31 de julho, autorização para a invasão do Haiti, formalmente destinada a remover o governo militar, reinstalando o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide e estabelecendo a democracia. A decisão deu cobertura legal para a operação de guerra montada pela Casa Branca. Entre os cinco membros permanentes, apenas a China se absteve.
O Brasil, membro rotativo, também se absteve argumentando que a situação do Haiti “não coloca em risco a paz mundial”. México, Colômbia e Venezuela compareceram à sessão em apoio à posição brasileira.
Nada que aconteça no Haiti coloca em risco a paz mundial. O país, com menos de 7 milhões de habitantes, está entre os mais pobres do planeta:
o analfabetismo atinge quase metade da população, a mortalidade infantil ultrapassa a faixa de 100% e a expectativa de vida não chega a 55 anos. O inferno haitiano contrasta com a opulência do passado colonial. No século XVIII, a colônia da Ilha Hispaniola era a mais rica possessão de França e as plantações açucareiras geravam quase 40% do PNB metropolitano.
Ironicamente, os ideais da Revolução Francesa fermentaram a primeira revolução de escravos do mundo, em 1801, quando o negro Toussaint L’Ouverture derrotou os franceses e extinguiu a escravidão.
Esse momento de glória assinalou o começo da decadência. Em meados do século XIX, uma guerra com a vizinha República Dominicana arrasou o Haiti.
Tropas americanas desembarcaram no Haiti há 79 anos, ali permanecendo de 1915 a 1934. Era a “Política do Big Stick”, quando Washington implantava a sua hegemonia no Caribe. Na época, o argumento utilizado foi também o do estabelecimento da democracia. Em vez dela, os haitianos vergaram sob a ditadura de François Duvalier, o Papa Doc (1957-71) e do seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc (1971-86). Esses tiranos, encarados com um misto de aprovação e desprezo por Washington, prosseguiram a tradição dos ditadores oriundos da elite nascida na revolução dos escravos. Controlando as terras e o aparelho do Estado, cultivando a língua francesa e a religião católica, os negros poderosos separaram-se do povo miserável, que fala o créole e pratica o vodu.
A bandeira da democracia foi desfraldada mais uma vez por Washington em 1986, quando Baby Doc, sob assédio de uma revolta popular, foi retirado do palácio por aeronaves americanas.
O poder foi transferido para uma junta militar, recheada de antigos duvalieristas e sustentada por oficiais dos Tonton- Macoutes, a perversa polícia secreta do clã de ditadores. A irrupção de novas revoltas e a pressão internacional abriram caminho para a primeira eleição livre do país, em 1990, quando o padre Aristide, ligado à Teologia da Libertação, recebeu cerca de 2/3 dos votos.
Apenas dez meses depois, o presidente foi deposto por um golpe liderado pelo general Raoul Cedras e obrigado a exilar-se nos Estados Unidos. O golpe de Cedras e a volta do terror duvalierista inauguraram a crise atual. Desde então, dezena de milhares de refugiados, lançaram-se na aventura suicida da travessia do Caribe à costa americana em embarcações improvisadas para fugir do inferno. O presidente Bill Clinton, que condenou a política de repatriamento dos refugiados executada por George Bush, retomou-a depois de eleito. A invasão em marcha visa estancar esse fluxo e estabilizar a fronteira caribenha do Estados Unidos. Não é a paz mundial ou a democracia que estão em jogo, mas a geopolítica de Washington no Caribe.
Caribe mescla influências de três mundos
O Caribe nem é a África nem a Europa e nem mesmo a América, mas reúne algo de cada um desses continentes: é um ponto de passagem de três mundos. As ilhas caribenhas, na sua maioria, foram subtraídas ao conjunto geopolítico da América Hispânica pelo avanço de potências coloniais concorrentes que, no final do século XVII, repartiram os arquipélagos. Além dos espanhóis, ingleses, franceses e holandeses estabeleceram na região centros produtores de cana de açúcar que ultrapassaram em opulência o nordeste brasileiro.
O Caribe se distingue do istmo centro-americano pelo tipo de importação da força de trabalho, capturada em diferentes pontos. Os lotes, étnica e culturalmente heterogênicos, eram desembarcados em quantidades definidas pelo mercado. O povoamento negro do Caribe desarticulou os grupos étnicos africanos, impedindo o transplante de tradições, crenças e dialetos. A salada caribenha complicou-se ainda mais, com a imigração de indianos, chineses, indonésios e árabes, dos fluxos migratórios que deslocaram haitianos e jamaicanos para outras ilhas e da mestiçagem. Essa diversidade reflete-se nos dialetos creóle, diferentes em cada arquipélago e resultante do sincretismo do inglês ou francês com fragmentos de dialetos africanos.
A unidade do Caribe está na sua pluralidade, que se manifesta na convivência de ilhas prósperas com economia apoiada no turismo e operações bancárias em regime de “paraíso fiscal” (Bahamas, Caymã, Antilhas holandesas) com ilhas miseráveis que exportam emigrantes desesperados, dos quais o Haiti é o exemplo mais trágico.

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