domingo, 23 de janeiro de 2011

Turquia quer ser Xerife dos EUA no Oriente Médio

Durante os séculos XV e XVI, a maior parte do mundo muçulmano foi integrada em três grandes impérios, dos otomanos, safávidas e grão-mongóis. Todos os países de língua árabe foram incluídos no Império otomano, com capital em istambul, excetuando-se partes da Arábia, o Sudão e o Marrocos; o Império também incluía a Anatólia e o sudeste da Europa (...). O Império era um Estado burocrático, contendo diferentes regiões dentro de um único sistema administrativo e fiscal. Foi também, no entanto, a última grande expressão da universalidade do mundo do Islã. preservou a lei religiosa, protegeu e ampliou as fronteiras do mundo muçulmano. Guardou  as cidades santas da Arábia e organizou a peregrinação a elas.
Igualmente um Estado multi religioso, deu um status reconhecido às comunidades cristã e judaica. (Albert Hourani, Uma História dos Popvos Árabes, Cia. da letras, 1994, pág. 215)
O Iraque é palco de mais uma operação militar de envergadura. No final de março, 35 mil soldados turcos penetraram ao longo de 385 km de fronteiras, numa profundidade de 40 km Iraque adentro.
Na Guerra do Golfo, em 1991, as operações da coalizão multinacional liderada pelos Estados Unidos contra o Iraque concentraram-se na faixa meridional de fronteira com o Kuait. Agora, a operação se desenvolve na porção setentrional do território, habitada pela numerosa minoria curda. O alvo são os guerrilheiros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que luta pela constituição de um Estado curdo.
A operação militar turca representa um realinhamento de forças no Oriente Médio, mas o seu significado ultrapassa os limites da região. A ofensiva constitui um novo passo na definição do papel geopolítico da Turquia, tencionando as relações complexas que ela mantém com a Europa cristã e o Oriente Médio muçulmano.
O Estado turco é herdeiro da lenta decomposição do Império Otomano, que na Idade Moderna estabelecera uma moldura de unidade geopolítica sobre a Ásia ocidental, a África do norte e a Europa balcânica . A burocracia otomana e a cultura muçulmana funcionaram como pilares desse vasto conjunto.
No século XIX, a decadência de Istambul combinou-se com a expansão das potências européias e com as lutas nacionais balcânicas, resultando na dispersão e fragmentação do Império . Ao final da 1ª Guerra (1914-18), a “pequena Turquia” atual surgiu no rescaldo do desastre otomano.
O nacionalismo turco contemporâneo nasceu com Mustafá Kemal “Ataturk” (o “Pai dos Turcos”), líder da revolta contra o Sultão que conduziu à proclamação da república, em 1923. A nova capital, Ancara, erguida no centro do país em substituição a Istambul, simbolizou a troca da tradição muçulmana e imperial pelo projeto de edificação de uma nação moderna e laica. A mudança da capital foi também uma ruptura com a herança bizantina, inscrita na cidade européia debruçada sobre o estreito de Bósforo.
Desde o seu nascimento, a Turquia atual oscilou entre Europa e Ásia. Sua posição geográfica acentuou a pendularidade. Com o final da 2ª Guerra (1939-45) e a instalação da Guerra Fria, o valor geopolítico da Turquia cresceu. Integrado à Otan desde 1949, o país tornou-se o centro nevrálgico da defesa do Mediterrâneo oriental e base de mísseis nucleares de médio alcance. Essa condição estratégica aprofundou os laços entre o Estado turco e a Europa ocidental e semeou esperanças de sua integração econômica ao espaço europeu.
Há mais de 20 anos, a Turquia solicita adesão à Comunidade Européia (União Européia). O pedido inicial foi rejeitado em função do conflito com a Grécia, em 1974, pelo controle sobre Chipre. Depois, a recusa européia assentou-se sobre os atentados aos direitos humanos. A invasão do Iraque pode derrubar o projeto de união alfandegária. Atrás das dificuldades para o  ingresso na UE, encontra-se a mal disfarçada oposição européia em acolher um parceiro muçulmano.
Mas a Casa Branca enxerga na Turquia um bastião estratégico no Mediterrâneo oriental e um aliado de peso no Oriente Médio. O regime xiita do Irã; a evolução incerta do Iraque e as ameaças fundamentalistas contra o regime pró-ocidental do Egito; a agitação que acompanha o processo de paz entre Israel e os palestinos; o impasse nas conversações entre Israel e a Síria -tudo reforça a importância de Ancara. A ofensiva turca contra os curdos conta com a discreta benevolência de Washington.
No final do século XVII, o Império Otomano recobria espaços heterogêneos em três continentes.
A capital, Istambul, herdeira das tradições bizantinas de Constantinopla, debruçada no estreito de Bósforo, simbolizava o intercâmbio de culturas e civilizações que plasmou o império. A Anatólia turca soldava os territórios balcânicos da Europa ao Oriente Médio árabe. A África do Norte, islamizada dez séculos antes pelas invasões maometanas, conformava a periferia do espaço imperial. O Mediterrâneo oriental, os estreitos turcos e o Mar Negro tornaram-se os “lagos otomanos”, interligando o rendado plural das terras controladas pelo Sultão. Os limites do império formavam zonas de tensão: na Europa, com o Sacro Império Romano e com a Rússia; no Oriente Médio, com o Império Safávida dos persas; no ocidente africano, com o Sultanato do Marrocos.
A coerência de Washington
Em agosto de 1990, o Iraque de Sadam Hussein invadiu o Kuait. Horas depois, a Casa Branca, condenou o atentado contra a soberania do emirado. A condenação não se limitou à retórica... Agora, quando a Turquia invadiu o Iraque, ninguém ouviu uma palavra de censura da Casa Branca. Onde está o coerência  moral de Washington?
Em 1513, o florentino Maquiavel ensinou a separar a política da moral. Washington finge que não, mas aprendeu a lição: sua coerência repousa da defesa do interesse nacional, ainda que seu discurso viva dando lições de moral.
(Demétrio Magnoli)
Guerrilha nacionalista curda ameaça a estabilidade regional
Na segunda quinzena de março, pelo menos 35 mil tropas turcas atravessaram a fronteira iraquiana com o objetivo de destruir o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que luta pela criação de um Estado independente.
Descendentes de tribos de pastores que se fixaram nas regiões montanhosas da Ásia ocidental, os curdos ali permaneceram milhares de anos, absorvendo influências (como a religião islâmica), mas preservando o idioma e costumes próprios. Até o final da 1ª Guerra, eles estiveram sob o domínio do Império Otomano. Com a desagregação do império as potências vencedoras repartiram as terras curdas entre diversos povos que anteriormente estavam sob o jugo otomano. Os curdos são, hoje, quase 25 milhões, na Turquia (12 milhões), Irã (6 milhões), Iraque (4 milhões), Síria (800 mil) e Armênia (56 mil). O Curdistão independente compreenderia terras desses países.
Nas últimas décadas, os curdos foram “estimulados” a deixarem o sudeste da Turquia, onde se localiza o “Curdistão turco”, e a se instalarem na Anatólia Central e cidades do oeste. O governo turco afirma que mais de 60% dos curdos vivem a oeste da capital, Ancara. No Irã, os curdos se concentram junto à fronteira com a Turquia e Iraque. Nesse último país, habitam principalmente as ricas províncias petrolíferas do norte-nordeste.
Ancara insiste em afirmar que os curdos são “cidadãos turcos como os demais”, mas usa quase metade dos efetivos de suas forças armadas contra o PKK, que desde 1984 mantém uma guerra de guerrilhas no sudeste do país. Essa região tem grande importância para a Turquia. Nela vem se desenvolvendo, há mais de uma década, um grande empreendimento agrícola e energético, junto ao alto vale dos rios Tigre e Eufrates, o Projeto da Grande Anatólia (PGA). O sucesso do PGA depende da “pacificação” da área, que em parte considerável coincide com o Curdistão turco
Desde abril de 1991, a ONU criou na parte setentrional do Iraque uma zona de proteção para a população curda, ameaçada de extermínio por Sadam. Localizada ao norte do paralelo 36, essa zona passou a constituir área de exclusão militar, escapando ao poder de Bagdá. A nova situação criou um vazio político que tornou o Curdistão iraquiano um centro de questões regionais, para onde convergem interesses dos curdos, da Turquia e do Irã. A invasão turca tem o objetivo de “resolver” de vez o problema, eliminando o PKK. Quer impedir que o vazio político seja preenchido pela influência do Irã xiita.

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