Abril, 1985: Gorbatchov assume o poder na URSS
“Atravessei um grande caminho até compreender as causas que determinaram a divisão ideológica dos Estados em blocos. Não há resposta nos modelos que pretendiam explicar o mundo através da luta de classes (...) Com o nosso 'novo pensamento político' abrimos caminho para o fim da Guerra Fria.
Liberamos as relações internacionais do fardo que representava a questão ideológica. Colocou-se para cada país a possibilidade de liberdade de opção. Cada nação, cada povo voltou-se para sua história e passou a indagar de novo o seu lugar no mundo.”
(Mikhail Gorbatchov, ex-dirigente da URSS, em entrevista a José Arbex Jr., Editor Geral de Mundo, na Folha de S. Paulo, 28.nov.92, pág. 1-13)
“Você é de direita ou de esquerda?
– Durante muito tempo, a resposta a essa pergunta poderia equivaler a uma sentença de morte. Ser taxado de “direita” por uma ditadura comunista era tão grave quanto ser de “esquerda” sob uma ditadura militar latino americana. Mesmo nos “democráticos” Estados Unidos, brilhantes artistas e intelectuais, gente como Charles Chaplin, foram levados à falência ou até ao suicídio nos anos 50, por terem sido acusados de “esquerdistas” pelo senador Joseph McCarthy.
“Esquerda” designava doutrinas políticas preocupadas com a justiça social, distribuição de renda democrática e direitos humanos. Regimes “de esquerda” eram, em geral, ditaduras sob influência de Moscou ou Pequim. “Direita” aplicava-se às teorias “individualistas” ou “liberais”, que colocavam a felicidade como uma conquista do mais capaz, ou descrevia regimes de “exceção”, ditaduras militares sob o mando de Washington. Da mesma forma, desde o início da Guerra Fria (1947), “leste” e “oeste” não significavam orientações geográficas, mas situações ideológicas.
Por exemplo, Cuba pertencia ao “leste”, o Japão era “ocidental”.
O carimbo ideológico era fundamental – não só na esfera da “alta política”, mas também no dia-a-dia. Os rótulos de “esquerda” e “direita” dividiam famílias, criavam distância ou cumplicidade entre amigos, separavam ou juntavam namorados.
Isso tudo valia até abril de 1985, quando Mikhail Gorbatchov assumiu o cargo de secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Desde o início, Gorbatchov introduziu uma “novidade”: a necessidade de civilizar as relações internacionais, através da retomada do diálogo e do desarmamento. Queria, também, construir em seu país um Estado de Direito, isto é, um conjunto de leis garantindo e regulamentando os direitos e deveres dos cidadãos. Democracia e civilização passaram a ser mais importantes do que “esquerda” e “direita”, “leste” e “oeste”.
No plano externo, Gorbatchov se chocava com a tradição da Guerra Fria, que dividira o mundo em blocos.
E, enfrentava, também, a truculência do presidente americano Ronald Reagan, que, no auge de seus delírios imperialistas, falava em “Guerra nas Estrelas”.
Não por acaso, à época, Sylvester “Rambo” Stallone, muito músculo e pouco cérebro, tornava-se herói americano.
No plano interno, Gorbatchov se chocava com as tradições da Rússia.
Nunca antes houvera democracia no país. Se até 1917 os czares governam o país com crueldade e despotismo (em nome de Deus e da “Mãe Rússia”), depois da Revolução de outubro a crueldade e o despotismo continuaram prevalecendo (agora em nome do socialismo e da “Mãe Rússia”).
Nada poderia ser mais estranho à noção de Estado de Direito do que uma sociedade em que nunca houvera liberdade de opinião e de expressão, em que discordar era crime.
O mundo logo consagraria duas expressões-síntese das reformas de Gorbatchov. Glasnot, que em russo significa transparência, traduzia a vontade de liquidar os mecanismos tradicionais de censura e repressão tão caros ao regime soviético. Perestroika, reestruturação, descrevia o processo de reconstrução da vida econômica e social livres da tutela do Estado e do PCUS (o único legalizado desde 1918).
Gorbatchov levou até o fim sua determinação de construir um Estado de Direito, mesmo quando se tornou claro que isso lhe custaria desmembrar o Império. Em certo sentido, ele foi um anti-estadista: promoveu, por meios pacíficos, a dissolução de seu próprio poder. Em 1990, instaurou o direito ao pluralismo partidário da URSS; em 1989, encorajou as manifestações que causariam a queda do Muro de Berlim; em 1988, retirou suas tropas do Afeganistão; em 1986, eliminou unilateralmente os testes nucleares subterrâneos.
Dentro da URSS, manteve o diálogo com as Frentes Populares das repúblicas que queriam independência de Moscou. Enfrentou as maiores dissidências, mas nunca ordenou a prisão de ninguém.
Com Gorbatchov, o mundo viu ser possível a prática de outra lógica que não a Razão de Estado, sempre invocada para justificar todo tipo de infâmia e cinismo. O discurso político ganhou uma credibilidade que há muito se julgava para sempre perdida.
Em agosto de 1991, um golpe articulado por antigos burocratas e generais precipitou o fim da URSS. Mas a influência de Gorbatchov sobre o mundo sobrevive ao fim de seu mandato.
A Guerra Fria acabou, o totalitarismo foi banido de uma área imensa do planeta, e um problema central desafia a comunidade das nações: o Estado de Direito ainda é um objetivo a ser alcançado, mesmo nas mais ricas “democracias” – que o digam negros e hispânicos marginalizados nos Estados Unidos, ou os imigrantes atacados por neonazistas europeus.
Quando ainda era dirigente soviético, no auge da Guerra do Golfo, Gorbatchov lamentou a presença de “muitos homens armados” na região.
É irresistível evocar Montesquieu: “Ninguém aceita facilmente soluções violentas”, dizia o profeta da moderação do Iluminismo. Gorbatchov foi um Montesquieu que chegou à condição de chefe de superpotência. Num mundo embrutecido pelo legado do nazismo, stalinismo e Hiroxima, “Gorbi” ousou trocar a linguagem do Estado pela dos homens livres.
Editora Scipione/Laureni Fochetto Na charge, típica dos anos de “perestroika”, o cartunista russo Sergei Tunin retrata os parlamentares do antigo Soviete Supremo como gado amestrado. Gorbatchov recebe o Nobel da paz, em 1990 .
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