DEMÉTRIO MAGNOLI
As décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial descortinaram um cenário internacional atravessado por duas superfícies de atrito principais: a que separou o Oeste e o Leste e a que separou o Norte e o Sul. O conflito Leste/Oeste derivava das condições de equilíbrio geopolítico criadas pela Guerra Fria. O conflito Norte/Sul derivava das disparidades de industrialização entre, de um lado a Europa, América Anglo-Saxônica e Japão e, de outro, a América Latina, África e Ásia meridional.
O fim da Guerra Fria e as transformações revolucionárias que incidem, há cerca de vinte anos, na economia mundial tornam obsoleto esse cenário e as superfícies de atrito que o estruturavam. No final do século, o cenário internacional organizava-se em torno de pólos de poder geoeconômico principais e secundários que atravessam as tradicionais linhas de ruptura Leste/Oeste e Norte/Sul.
O Cone Sul da América encontra-se em posição descentralizada frente aos principais pólos de poder global. Ele constitui uma área de concentração de poder de magnitude secundária localizada de maneira excêntrica, em torno do Trópico de Capricórnio. Os países do Cone Sul movem-se em ambiente diferente daquele que envolve o México e o Caribe, os países do norte africano e oriente Médio e os “Dragões Asiáticos”. Enquanto estas áreas de concentração de poder secundário situam-se na área de influência imediata dos Estados Unidos, Europa Ocidental ou Japão, os países do Cone Sul situam-se em localização geograficamente marginal.
A excentricidade geográfica da área secundária de concentração de poder do Cone Sul tem duas implicações: de um lado, contribui para a configuração de um bloco como o Mercosul; de outro, reduz a importância geopolítica geral do bloco sub-regional.
A década de 1990 marca uma ruptura nas políticas econômicas seguidas pelos governos latino-americanos. As tradicionais políticas protecionistas vêm sendo substituídas por agressivas estratégias comerciais regionalistas. Uma série de tratados de livre comércio foram assinados entre os países do subcontinente, visando a ampliação de conjuntos econômicos ampliados.
A iniciativa para as Américas, lançada pelos Estados Unidos, prevê a configuração de uma vasta zona continental de livre comércio, do Alasca à Terra do Fogo. Essa perspectiva – que assinala uma retomada de uma atividade hemisférica pelos Estados Unidos – fornece um quadro para a evolução dos inúmeros acordos na América Latina. Ela retoma os fundamentos do pan-americanismo e procura dissolver a fronteira que separa o conjunto latino-americano da América Anglo-Saxônica, a fim de criar o alicerce da liderança de Washington sobre todo o continente nas décadas vindouras.
O Cone Sul da América Latina abriga a única área de concentração de poder do subcontinente. O Brasil e a Argentina imprimem uma dinâmica de integração à sub-região que se materializa na formação do Mercosul. As diferenças entre as posturas brasileira e Argentina reflete as disparidades de poder econômico dos dois países. O Brasil, com um vasto mercado interno e uma apreciável diversidade industrial, procura fixar uma posição de liderança na América Latina e utilizar em seu próprio proveito a acirrada competição das potências geoeconômicas de influência mundial. A Argentina, limitada pelas dimensões de seu mercado interno e pela fragilidade da sua base industrial, manobra para alcançar uma inserção satisfatória na economia global através do desenvolvimento de certas especializações produtivas.
O Mercosul surge no interior de um ambiente influenciado pelas novas estratégias continentais norte-americanas, de um lado, e pela emergência do Japão e dos países do leste asiático como poderosos imãs econômicos, de outro.
O Nafta e a Bacia do Pacífico representam os balizamentos essenciais que demarcam o horizonte do Mercosul. Esse horizonte descortina um campo limitado de opções e um quadro definido para a evolução de cooperação e da competição entre o Brasil e a Argentina.
O Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte, assinado em 1992) é a pedra fundamental da estratégia hemisférica de W a s h i n g t o n .
Acoplando o México ao conjunto anglo saxão, rompe a unidade geopolítica, ideológica e psicológica da América Latina e abre horizonte sobre o qual se projeta a Iniciativa para as Américas. O MCCA (Mercado Comum Centro-Americano, de 1960), o Pacto Andino (1969) e o Caricom (Mercado Comum do Caribe, de 1972) fazem parte do passado econômico da América Latina, quando resplandecia o projeto da unidade do subcontinente expresso no projeto fracassado da Alalc (Associação Latino-Americana de Livre-Comércio, fundada em 1960 e dissolvida em 1980). Atualmente, a globalização da economia rompe a inércia desses blocos, empurrando seus integrantes para novos tipos de iniciativa regional.
Colômbia e Venezuela firmaram acordo de livre comércio, que se estende para Bolívia e Equador. Na América Central, o MCCA começa a ser reativado e ensaia acordos com México e Colômbia. O México continua afastado do Mercosul, mas desenvolve frenética atividade diplomática, oscilando entre o Nafta e a Bacia do Pacífico. Recentemente, firmou acordos comerciais com a Argentina e o México – primeira ponte entre o Mercosul e o Nafta. A estagnação do Pacto Andino empurrou seus integrantes para novo tipo de iniciativa regional. A Colômbia e a Venezuela firmaram um acordo de abolição de tarifas alfandegárias, em janeiro de 1992. Imediatamente, o comércio entre os dois parceiros aumentou em 60%. No início de 1993, entrou em vigor o acordo de livre comércio (tarifa zero) entre Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela. Esse passo, que deverá ser seguido pelo Peru, reativou a zona andina. Similarmente, a inércia que paralisava a MCCA foi rompida pelo acordo de comércio livre entre El Salvado, Guatemala e Honduras, já em vigor. Um tratado inicial firma o compromisso de instituição de uma zona de livre comércio maior – com o México, Nicarágua e Costa Rica – em 1996. Na outra ponta do mapa, os cinco parceiros da América Central concluíram um acordo comercial com a Venezuela e a Colômbia, que deve entrar em vigor no final da década. No Cone Sul, além da iniciativa mais importante que é a do Mercosul, destaca-se a atividade diplomática chilena. A cooperação comercial com a Argentina, esboçada desde 1984, já produz frutos: o comércio bilateral saltou de US$ 0,8 bilhão para cerca de US$ 1,2 bilhões entre 1991 e 1992. Já o acordo assinado com o México – que prevê a eliminação gradativa das barreiras comerciais até 1998 – representa a primeira ponte formal entre o Cone Sul e o Nafta. O Chile, com peso menor que as potências sub regionais, direciona a sua política externa de modo substancialmente diferente: define a seu lugar no mundo mediante um jogo que oscila entre os pólos de poder da América do Norte e da Bacia do Pacifico e o Mercosul.
DESIGUALDADES DESAFIAM OS PLANOS DE CRESCIMENTO NA AMÉRICA LATINA
NELSON BACIC OLIC
Os anos 80 foram uma “década perdida” para a América Latina. Nesse período, os países da região viveram uma crise econômica sem precedentes. Embora as causas da crise sejam complexas, seu aspecto crucial refere-se ao crescimento desmesurado da dívida externa. As décadas de 50, 60 e 70 foram de grande crescimento econômico para a maioria dos países da região, especialmente o Brasil, Argentina e México, que conseguiram constituir e consolidar importantes parques industriais.
Esse processo de acelerado incremento industrial foi resultado da aplicação de um modelo que combinava importante participação do Estado como agente econômico, proteção do mercado interno e expressivo endividamento externo.
Até os anos 70, a dívida externa estava aparentemente sob controle, apesar das turbulências causadas pelos dois choques do petróleo (1973/74 e 1978/79). O controle foi perdido quando, no início dos anos 80, o governo norte-americano aumentou unilateralmente as taxas dos juros internacionais.
Isso fez com que as dívidas, de uma ora para a outra, tivessem seu montante aumentado drasticamente.
Como desgraça pouca é bobagem, o crescimento da dívida combinou-se com a queda dos preços dos principais produtos exportados pelos países da região e com a diminuição das taxas de investimentos produtivos. O resultado foi a virtual inadimplência dos devedores, que chegaram a esboçar tentativas de “calote”. Os credores, comandados por Washington, e junto com entidades financeiras internacionais tendo à frente o Fundo Monetário Internacional (FMI), passaram a pressionar os devedores no sentido de implementar medidas para sanear suas economias. O conjunto de ações econômicas impostas aos países da América Latina forma os chamados ajustes estruturais.
Esses ajustes baseavam-se num tripé de medidas:
1. Diminuição da participação do Estado na economia, através da privatização das estatais.
Configura-se também a idéia de que a ação do Estado deveria ficar restrita aos setores sociais como Educação, Saúde, Segurança e Moradia popular.
2. Redução do déficit público, com a promoção de um enxugamento da máquina administrativa e um aprimoramento fiscal que resultasse numa melhoria do sistema de arrecadação de impostos.
3. A abertura econômica visando ampliar as exportações e, principalmente, reduzir as alíquotas sobre as importações. Na prática, a aplicação dos ajustes estruturais resulta o fim do modelo de substituição das importações que já vinha mostrando sinais de esgotamento desde a segunda metade dos anos 70.
Embora inicialmente relutassem na aplicação desses projetos, os países latino-americanos, gradativamente se renderam às pressões. O primeiro grande país a fazer estes grandes ajustes foi o Chile, na segunda metade dos anos 80. Em seguida, foi a vez do México (1988), a Argentina (1991) e o Brasil (1993/94). A dimensão mais visível da aplicação dos ajustes foi a redução das taxas inflacionárias, cujos altos índices dificultavam qualquer plano de estabilização econômica. Conseguida essa estabilidade, começou a se delinear um clima propício para a retomada do crescimento econômico e a volta dos investimentos externos.
Contudo, um problema crucial ainda se coloca nesse cenário otimista. As enormes desigualdades sociais, já existentes anteriormente à década perdida, se acentuaram drasticamente ao longo dos anos 80. Os novos paradigmas da economia não apresentam respostas a isso. Ainda é cedo para se afirmar que a América Latina entrou ou não num novo ciclo de crescimento. Mas, independentemente dos rumos que possa tomar a economia, não poderá mais ser adiada a necessidade de profundas transformações sociais.
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