quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

FESTIVAL DE WOODSTOCK, 25 ANOS DEPOIS- Jovens mobilizam sexo, drogas e rock’n roll contra Guerra do Vietnã

Entre 15 e 17 de agosto de 1969, 500 mil jovens reunidos numa fazenda no Estado de Nova York expuseram a hipocrisia do “establishment”, e provaram que é possível mudar a vida
NICOLAU SEVCENKO
Não foi o rock que fez Woodstock, não foi a juventude que fez Woodstock, não foram as drogas e nem o amor livre que fizeram Woodstock.
Quem fez Woodstock foi a Guerra do Vietnã. Perca de vista a guerra e você perde o nexo histórico que juntou aquele monta de gente, zoeira e celebração.
Para toda uma geração educada nos rigores da Guerra Fria, o cimento da sociedade eram as autoridades, legitimadas pela sua capacidade militar de zelar pela segurança de um mundo dividido e ameaçado. Essa situação era claramente representada por uma lógica esquemática e simplista, de história em quadrinhos: ou você estava com os Azuis ou com os Vermelhos, com o império do Bem ou com o do Mal, com o capitão América ou com as forças do Caos.
Você podia decidir de que lado iria ficar. Só o que não podia, de jeito nenhum, era querer ficar fora dessa batalha, porque isso era interpretado como tentativa traiçoeira de desmoralizar e quebrar o ânimo de luta dos Super-Heróis da democracia, na sua luta sem trégua aos Super-Vilões totalitários. Desejasse ou não, portanto, você fazia parte do gibi.
O Vietnã, pela sua posição estratégica no contexto do sudeste asiático, era uma peça decisiva nesse xadrez ideológico militar. O que levou os Estados Unidos a uma escalada crescente de intervenção, a fim de impedir a expansão das forças comunistas, representadas pela guerrilha popular dos vietcongs.
A partir de meados dos anos 60, o aumento maciço de tropas americanas na região, obrigou o governo a promover um recrutamento de jovens em larga escala para assegurar suas posições e conter o ímpeto dos guerrilheiros. A situação se mostrou logo como um dilema sem solução. O Exército americano não tinha familiaridade com a floresta tropical, não tinha experiência de luta contra guerrilhas e quanto mais aumentava seu potencial tecnológico de destruição, lançando mão de armas terríveis como napalm, os desfolhantes tóxicos, as bombas de fragmentação múltipla, balas explosivas e a destruição sistemática de aldeias e plantações, mais atrocidades causava e, com isso, induzia a população vietnamita a colaborar com a guerrilha, para expulsar o invasor desumano. Quanto mais os americanos atacavam, mais a guerrilha crescia, forçando a convocação de mais jovens americanos, cujo destino envolvia uma dupla tragédia: trucidar famílias camponesas com recursos tecnológicos e morrer ou ser mutilado nas armadilhas da guerrilha, numa selva escura de um país remoto por uma causa que só a burocracia militar e política entendiam.
Era pedir demais. Além disso, o aumento do envolvimento americano levou a uma ampliação da participação da mídia nas operações de guerra. Todos os órgãos de comunicação e informação mantinham equipes inteiras de correspondentes de guerra no Vietnã. O destaque, naturalmente, ficava por conta dos canais de televisão, que logo começaram a competir em torno de quem mantinha as maiores equipes e quem fazia a cobertura mais completa do “evento”, com repórteres e cinegrafistas acompanhando os pelotões diretamente no front.
Resultado, as famílias americanas, no horário nobre, enquanto consumiam cachorros-quentes e hambúrgueres do jantar, assistiam seus filhos queimando heroicamente crianças  camponesas vivas ou tendo pernas arrancadas pelas minas dos guerrilheiros, os corpos atravessados pelas lanças dos alçapões ou a cabeça decepada pelos facões de colher cana, num jorro de sangue que se confundia com o abundante catchup que rolava na mesa.
Foi, aliás, a partir da experiência do Vietnã que o Exército americano aprendeu a controlar o acesso da mídia na cobertura de suas guerras.
Havia também a questão da imagem interna da guerra. Quer dizer, a imagem dos aviões descarregando, várias vezes ao dia, quantidades enormes de sacos plásticos lacrados, contendo os restos de jovens recrutas, que dos aeroportos eram despachados por trens ou carros-frigoríficos para suas cidades de origem. Era inevitável comparar com o serviço de entrega de um matadouro. A cena pela TV era tétrica, mas era ainda pior o desfile dos “pacotes” pelos bairros onde os garotos eram conhecidos.
Havia ainda o desfile diário dos mutilados, cegos, paralíticos, homens- tronco de vinte e poucos anos. Vidas inteiras arruinadas, desperdiçadas, antecipadamente lançadas no inferno. Os veteranos, desmobilizados por cumprirem seu tempo de serviço ou por baixa médica, logo sentiram o impacto da dificuldade de superarem o trauma da guerra e tentarem se reintegrar na vida social. Começaram a criar legiões de desempregados e desajustados e irão se organizar em associações de veteranos para, por trás de seu peito coberto de medalhas e ferimentos, denunciar a barbárie e o absurdo.
Instituem a prática da queima simbólica da bandeira americana em frente aos órgãos de recrutamento, quartéis e prédios do governo.
O movimento pelo fim da guerra começa a engrossar descontroladamente. O discurso ideológico da Guerra Fria perde sua inteireza e consistência, as autoridades perdem a legitimidade, a sociedade americana começa a esboroar. Como é fácil de deduzir, os ricos e poderosos conseguem meios de livrar seus filhos do alistamento e cada vez fica mais claro quem são os mais pobres, especialmente os negros, que compõe a carne de canhão. Além de política, a crise logo assume conotações sociais e raciais.
Mas acima de tudo instalasse uma crise de gerações.
Mais do que um desengajamento da política oficial americana, os jovens começam a propor uma ruptura radical e em todos os níveis com as gerações mais velhas. Pela primeira vez a juventude se percebe como força política autônoma, coesa, revolucionária e intransigente.Movimentos espontâneos começam a se formar, compondo uma rede clandestina, subversiva, destinada a mudar drasticamente os rumos da sociedade. Surgem grupos que propõe a queima pública das cartas de convocação para o serviço militar. Outros estabelecem circuitos de fuga de desertores para o Canadá.
Outros pregam a ida em massa para cadeia, a fim de deflagrar a rebelião no sistema penitenciário.
Outros pregam a revolta estudantil, outros ainda a revolução. A ordem para quem tinha menos de 30 anos era denunciar e se desligar do sistema, o “establishment”.
Fosse por que meio fosse, a estratégia era a mesma: turn on, turn in, drop out!  Se  resumia numa única palavra, essa atitude era genericamente chamada de contracultura. Sua lucidez e potencial crítico foram reconhecidos por Herbert Marcuse, um dos mais radicais pensadores políticos do século. Mas eles podem ser encontrados em documentos elaborados pelos integrantes do gesto contra cultural. É o caso da Declaração de Port Huron É por aí  portanto que se pode tentar entender o que levou aqueles quase meio milhão de jovens a enturmarem do dia 15 ao 17 de agosto de 1969,numa fazenda no Estado de Nova York, sob o sol de verão tórrido. Até os organizadores do festival ficaram surpresos com a multidão. Os cálculos mais otimistas previam menos que a metade daquele povo. As autoridades decretaram zona de emergência nacional toda a área da fazenda e redondezas. O sistema de autopistas do interior do Estado ficou congestionado. Não havia alimentos, condições sanitárias, nem garantias de segurança.
A grande maioria entrou sem pagar e logo no início os organizadores declararam que o festival era de graça. Mas apesar da sobre carga e da carência de infra-estrutura, não houve um único incidente durante todo o festival. Se aquilo era uma zona de calamidade pública no entender das autoridades, para a moçada foi a construção de uma experiência utópica, a demonstração concreta de que a felicidade rima com amor, música, euforia e liberdade.
Woodstock um ritual de celebração dos sentidos e da beleza da vida e foi também um manifesto político de recusa da sociedade autoritária e repressiva dos adultos robotizados pela Guerra Fria.
O clímax do festival e uma das experiências artísticas mais chocantes deste século, foi quando Jimi Hendrix transformou o hino americano numa massa arrepiante de sons distorcidos, evocando gritos, explosões bombardeios aéreos e lamentos fúnebres, para logo em seguida tocar Purple Haze em ritmo alucinante, dando o breque em que pedia licença para beijar o céu.
Nunca o Espírito Santo esteve tão negro e tão lindo. A tempestade que assolou o festival só trouxe mais alegria; o som do palco parou e a rapaziada por conta própria se pôs a cantar, dançar, nadar pelado na chuva e brincar de escorregar na lama.
Nem todo mundo tinha cabelo comprido, nem todos usavam flores na cabeça, nem eram todos que curtiam drogas. Desconfie se te disserem que Woodstock foi coisa de hippie ou foi só um festival de rock. Woodstock foi a teatralização da contracultura, a demonstração cabal de que é possível, para o assombro e o desassossego dos conformistas.
Declaração de Port Huron
“Nós encaramos os seres humanos como infinitamente preciosos e dotados de potenciais ainda não explorados pela razão, a liberdade e o amor. Nós nos opomos  à despersonalização que reduz seres humanos à condição de coisas. Se há algo em que acreditamos, é que as brutalidades do século XX nos ensinam que os meios e os fins estão intimamente ligados, que apelos vagos à ‘posteridade’ não podem justificar as mutilações do presente.
A solidão, o estranhamento, a indiferença, descrevem a enorme distância que separa os homens uns dos outros.
Essas indiferenças não podem ser enfrentadas apenas por meio de uma melhor gestação das relações pessoais ou através de incrementos técnicos. Elas  só serão superadas quando o amor pelo homem vencer a adoração idólatra pelas coisas”.
Da SDS (Estudantes por uma Sociedade Democrática),um dos movimentos que lideravam a contracultura

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