quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Brasil assume ofensiva em busca de Mercados

Nos anos que antecederam o golpe de 1964, a “Política Externa Independente” de Jânio Quadros e Jango associou-se ao terceiro-mundismo em voga. O regime militar oscilou entre a adesão a Washington de Castelo Branco e o ‘‘nacionalismo’’ de Geisel. Qual o atual norte do Itamaraty?
Luiz Felipe Lampreia: A nossa concepção da política externa parte necessariamente de um diagnóstico do mundo em que nos inserimos, de uma consciência a respeito do que somos como nação e do que pretendemos. A diplomacia faz a ponte essas duas esferas. O mundo atual é marcado por grandes oportunidade e alguns riscos. É um mundo mais homogêneo, em que a democracia e a liberdade de mercado são forças dominantes; é globalizado, em que a abertura das economias cumpre um papel decisivo na obtenção de investimentos produtivos, no acesso a tecnologia e mercados, na melhoria da competitividade; e é um mundo de núcleos regionais de integração, que fazem dessa tendência uma força dominante na organização dos espaços econômicos internacionais. O sistema multilateral de comércio foi consolidado e fortalecido, a partir da conclusão da Rodada Uruguai do Gatt [sigla em inglês Acordo Geral de Tarifas e Comércio -NR] e da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), e alguns dos mais renitentes conflitos regionais (como o do Oriente Médio ou a questão do apartheid na África do Sul) evoluíram positivamente, abrindo novas possibilidades de parcerias. A competição ideológica e estratégica foi ultrapassada pela econômica e tecnológica, mas persistem desequilíbrios flagrantes entre os níveis de desenvolvimento dos países, barreiras ao comércio internacional e conflitos regionais.
O narcotráfico, o terrorismo, o crime organizado e o tráfico de armas são preocupações e problemas universais.
O Brasil é um país de grande complexidade, com sua democracia consolidada, em fase de estabilização e retomada do crescimento, comprometido com reformas que vão torná-lo mais atraente ao investimento produtivo internacional e à transferência de tecnologia. Seu perfil de comércio é equilibrado (entre a União Européia, os Estados Unidos, a América Latina, a Ásia e o restante do mundo), mas precisa ampliar sua participação no comércio internacional e melhorar o seu acesso a investimentos, tecnologias e mercados consumidores e fornecedores. Nossa diplomacia tem, portanto, um papel claro: ampliar as nossas parcerias, melhorando as tradicionais e explorando aquelas onde nossa presença ainda é incipiente (como nos países da Asean, na África do Sul); trilhar, com pragmatismo e objetividade, a via de integração, consolidando o Mercosul, explorando o acréscimo de interesse externo que a iniciativa cria para nós e contribuindo para a integração hemisférica; ampliar a nossa participação nos mecanismos decisórios de natureza econômica e política; e promover a imagem de um Brasil de economia mais aberta, com grande potencial de mercado, politicamente estável. Não é uma diplomacia que se preste a rótulos: ela quer ser universalista, pragmática, participativa e promocional.
Quais as perspectivas do Brasil em relação ao Mercosul?
Luiz Felipe Lampreia: Nossa prioridade é consolidar o Mercosul e as suas parcerias -com outros países latino-americanos, com o Pacto Andino, com a União Européia (UE). Nossa opção é por um caminho realista e pragmático, que leve em conta as dificuldades, os ajustes por que ainda passam os quatro países-membros.
Temos passado com êxito por provas complexas na implantação da União Aduaneira. O Mercosul tem ganho uma extraordinária projeção regional e internacional, despertando interesses em parceiros como a UE. Nenhuma das parcerias que o Mercosul pode buscar é excludente. No caso da UE, um acordo que crie uma área de livre comércio entre os dois sistemas reforçaria o perfil relativamente equilibrado que o Mercosul tem em suas relações externas. Quanto à integração hemisférica, chegaremos a uma área de livre comércio com a agregação gradual dos esquemas subregionais (é a tese do ‘‘building blocks’’) –o Mercosul, o Pacto Andino, o Nafta, o Mercado Comum Centro-Americano, o Caricom-, acrescida do vetor político representado pelo compromisso da Cúpula de Miami, de concluir as negociações até 2005.
 A crise financeira mexicana, que eclodiu em janeiro, parece redimensionar as perspectivas do sistema de Estados das Américas. Quais as suas repercussões no Nafta?
Luiz Felipe Lampreia:  A crise mexicana soou como um alerta de que é preciso fazer algo tanto no plano interno das economias em estabilização, quanto no plano da coordenação entre governos e no da mobilização dos organismos financeiros internacionais. As repercussões acabam por ser positivas, porque os países latino-americanos estão fazendo correções e tomando precauções indispensáveis para que possam persistir em seus esforços de estabilização, abertura e retomada do crescimento. Confiamos em que o México  conseguirá superar as suas dificuldades, inclusive porque, fazendo parte do Nafta, conta com um suporte inédito na história de um país latino-americano. Um México saudável só pode ser positivo para nós.
 Aparentemente, uma das prioridades do Itamaraty é o estímulo a iniciativas de tipo Sul-Sul, a promoção do intercâmbio com os ‘‘países-continente’’ (Rússia, China, Índia, África do Sul). Qual é o sentido dessa estratégia?
Luiz  Felipe Lampreia:  É precisamente o que eu disse: temos de ampliar e aperfeiçoar as nossas parcerias, e esses países, todos de grandes dimensões geográficas e demográficas, com muitos recursos naturais e projeção internacional e em suas respectivas regiões, constituem parcerias prioritárias. Com alguns deles (como a Índia e África do Sul), temos de recuperar tempo, queimar etapas; com a China, temos uma parceria exemplar, que alcança a área de tecnologias avançadas, na produção de satélites. São mercados de dimensões impressionantes para o Brasil, mas também são atraentes para investimentos e parcerias em terceiros mercados. E há, claro, a dimensão política, à medida que compartilhamos com eles uma série de interesses comuns em torno da agenda internacional, além de características e desafios internos, que tornam imprescindível uma relação estreita, de coordenação, consulta e cooperação.
As medidas para reequilibrar a balança comercial brasileira, como a criação de cotas automobilísticas, são vistas, às vezes, como um desafio ao multilateralismo da OMC e do Mercosul. Como conciliar a necessidade de proteger a estabilização interna com os acordos diplomáticos firmados pelo país?
Luiz Felipe Lampreia:  Nós estamos amparados pelos dispositivos do Gatt -o artigo XVIII- para adotar as medidas que nos vimos na obrigação de tomar. Além disso, temos tido a preocupação de explicar aos nossos parceiros que essas medidas refletem uma atitude cautelosa de preservação da estabilidade econômica.
 O México deu um sinal de alerta sobre os riscos associados aos fluxos globais de capitais financeiros de curto prazo. Os organismos financeiros –o FMI, o Banco Mundial- não parecem aparelhados para lidar com as novas condições da economia global. Como o Brasil se posiciona?
Luiz Felipe Lampreia:  O presidente Fernando Henrique foi o primeiro mandatário a chamar a atenção para o problema representado pela vontade dos capitais especulativos e para a necessidade de se protegerem as economias emergentes contra ataques especulativos.
Nossa proposta foi veiculada junto ao G-7 e outros interlocutores. Ela contempla algumas medidas, que estão sendo analisadas e debatidas, e que antes de tudo representam uma tomada de consciência sobre a necessidade e a possibilidade de se fazer algo para prevenir o que houve de artificial na crise mexicana. Basta mencionar os pontos centrais da nossa proposta: ampliar a cooperação entre autoridades monetárias com vistas a antecipar problemas; ampliar o escopo da coordenação macroeconômica entre os países que podem ter um grande impacto sobre o sistema financeiro internacional; expandir os mecanismos existentes nos organismos financeiros internacionais para estabilizar moedas sob ataques especulativos; e melhorar o monitoramento internacional de políticas macro-econômicas domésticas. O tema já adquiriu grande projeção internacional e as propostas de FHC foram objeto de considerações favoráveis na Cúpula do G-7, em Halifax.
 A “guerra comercial” EUA - Japão ameaça destruir a OMC no seu nascedouro. As sanções unilaterais americanas contra o Japão foram condenadas pela UE. Qual a posição brasileira?
Luiz Felipe Lampreia:  Nós nos atemos muito fortemente à letra e ao espírito dos acordos que resultaram da Rodada Uruguai e que representam um grande avanço na consolidação do multilateralismo. Esses acordos foram produto de uma longa e complexa negociação e representam um amplo pacote de barganhas. Naturalmente, as ações dos Estados em matéria comercial devem ser julgadas a partir da sua compatibilidade com a letra e o espírito da OMC. Por isso, nós esperamos que os contenciosos entre parceiros comerciais sejam resolvidos estritamente dentro do marco jurídico fornecido pelo Gatt, que é também um marco político, o do compromisso com o multilateralismo e com a liberalização do comércio.
 O ministro da Justiça Nelson Jobim declarou sua intenção de reabrir as investigações sobre a chacina de 111 presos do Carandiru (SP), inclusive para melhorar a imagem externa do país. Como o sr. vê essa questão?
Luiz Felipe Lampreia:  Nós temos reconhecido que o Brasil tem problemas na área de direitos humanos e quer resolvê-los com a ajuda desinteressada e não politizada da comunidade internacional, seja dos governos e organismos internacionais, seja das organizações não governamentais.
Qualquer medida que vise a esclarecer e punir casos de alegadas violações de direitos humanos é bem-vinda. Nossos maiores problemas, do ponto de vista da política externa, são a impressão de impunidade e as dificuldades que o governo federal tem para investigar, punir e prevenir a ocorrência de crimes contra os direitos humanos, muitas vezes porque a competência sobre esses crimes não é da União -que representa o país na comunidade internacional, mas dos Estados. Qualquer avanço em investigações sobre violações de direitos tem implicação direta sobre o padrão do nosso relacionamento com outros países e sobre a imagem do Brasil.
A ONU começa a discutir a reforma do Conselho de Segurança. Qual é a posição do Brasil a respeito ?
Luiz Felipe Lampreia:  O CS reflete uma realidade de poder mundial ultrapassada e precisa ser fortalecido para que possa ser mais eficaz na promoção e manutenção da paz e da segurança. Para fortalecer-se, ele precisa ter mais legitimidade, o que, em um órgão como a ONU, só se consegue através de melhor representatividade, além, óbvio, de mais recurso, sobretudo financeiro. A ampliação do número de membros permanentes e não-permanentes do Conselho responde a esse imperativo. Essa percepção parece ser majoritária, e da mesma forma tende a consolidar-se a idéia de que a maior representatividade do CS se obterá com a incorporação, como novos membros permanentes, de países com grande peso específico, perfil de atuação global e representatividade em relação às regiões e grupos de países. Nosso esforço é no sentido de promover essa idéia.
 O CS pode apenas incorporar Japão e Alemanha, transformando-se em algo como um G-7 ampliado. O Brasil está disposto a combater essa perspectiva, ou apenas luta para ser integrado ao CS?
Luiz Felipe Lampreia:  Nós estamos dispostos a colaborar para que o CS se torne mais legítimo, eficaz e representativo.
Uma fórmula que contemple a simples incorporação do Japão e da Alemanha -o ‘‘quick fix’’, no jargão da ONU- não corresponde aos princípios que devem nortear uma reforma. Nós não pretendemos um lugar no CS como parte de uma política de prestígio, ou como um exercício teórico. Queremos que o Conselho funcione melhor, tenha mais autoridade.
Boletim Mundo Ano 3 n° 4

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