quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

De como Hollywood engoliu o cinema

Nicolau Sevcenko
Podemos, facilmente, falar numa história dividida em dois períodos, AH e DH, antes e depois de Hollywood, pelo menos naquilo que se refere à cultura brasileira. Antes de 1920, a maioria dos brasileiros buscava nos seus pais, parentes, amigos, vizinhos e nos membros de seu grupo social os parâmetros para o seu comportamento, suas crenças, suas esperanças, seu modo de se vestir e seu vocabulário.
Depois de 1920, a maioria deles, pelo menos os que viviam nos grandes centros urbanos, buscava os mesmos parâmetros nas telas de cinema.
É óbvio que isso não significa que acabou aí a cultura tradicional, popular e local brasileira, mesmo porque mudanças culturais não acontecem mediante saltos repentinos, mas sim através de processos de contaminação e fusão. Mas isso significa que a dinâmica das mudanças culturais foi acelerada pelo eletrizante poder de sonho da tela prateada.
Há uma razão para que eu fale especificamente de Hollywood, e não do cinema em geral, como forma cultural.
Hollywood, ou o “novo Bizâncio” -expressão comum, à época, para designar suas pretensões colossais e imperiais-, desenvolveu uma série de técnicas para viabilizar tanto o uso de seus poderes como máquina de sonhos quanto o seu sucesso como empreendimento comercial, atingindo uma supremacia internacional incontrastável.
Foi Hollywood que inventou o método mais eficaz e lucrativo de produzir filmes, o sistema de estúdios, como uma maneira de levar a cabo os seus projetos e suprir próprias suas necessidades. D. W. Griffith criou a alma do estúdio, a “estrela” (“star”), de onde veio a noção de “sistema de estrelas”. Essas duas concepções fundamentais abriram uma vertente integralmente nova de descobertas, técnicas e práticas revolucionárias, como o close-up, a exploração dos efeitos emocionais permitidas pela edição, ritmo, luz, juventude, expressão facial, maquiagem, movimentos, roupas, estilo, assim como o uso dessa força misteriosa e arrebatadora que é o apelo sexual.
Como podemos ver, a maioria dessa  inovações implicou um mergulho profundo do reino da comunicação não-verbal. Nesse sentido, as experiências colocadas em prática pelos técnicos e artistas de Hollywood eram comparáveis apenas às praticadas pelos fotógrafos surrealistas, embora menos radicais, mais sistemáticas e sensíveis ao gosto do público.
Os paralelos com a escola expressionista alemã eram tão óbvios que muitos participantes daquela escola acabaram trabalhando em Hollywood nos anos 30. Foi essa ampla gama de experiências, motivada pelos interesses imperativos dos estúdios de atingir grandes audiências tão rápida e profundamente quanto possível, que levou os chefes de Hollywood a entender que filmes eram feitos para os olhos e para o subconsciente, não para explicações verbais ou racionais.
Os filmes tinham que dar prazer, mas para isso eles deveriam, antes  de mais nada, mobilizar e galvanizar as energias mais obscuras das profundezas do ser humano. É por  essa razão que os filmes estão muito mais próximos às mitologias no seu sentido místico do que de narrativas ou histórias enquadradas numa lógica verbal ou racional. Provavelmente para enfatizar esses elementos de regressão e apelo ao primitivo de cada indivíduo, muitos críticos e teóricos do cinema gostavam de se referir a Hollywood como “Meca”, “novo Bizâncio”, “Babilônia ressuscitada”.
Outra característica marcante de Hollywood era sua total fidelidade a temas míticos. Essa característica pode ser já detectada nos épicos de Griffith, como “Gênese do Homem”, de 1912, mas sobretudo em “Nascimento de uma Nação”, de 1915. Esse tipo de filme estabeleceu a tendência, em Hollywood, de reescrever a história a partir de uma perspectiva americana.
Não tinha nada a ver com pesquisas históricas -desnecessário dizê-lo-, mas consistia apenas de recomposição formal de um material mítico oferecido à digestão fácil de grandes audiências nacionais e estrangeiras.
Basicamente, o filme era concebido como um conflito moral maniqueísta, opondo velhos impérios orientais ou clássicos, com seus costumes pagãos decadentes, aos valores superiores da democracia branca e cristã americana. Esse jogo de oposição era composto sob a forma de parábolas visuais expressas, silenciosamente, pelos papéis e aparências de artistas jovens, que você poderia qualificar às vezes como anjos e deusas, outras vezes como estrelas.
O Mal era corporificado pela figura oriental da judia-americana Theda Bara, sempre vestida de preto, seminua, dominando com vícios e sexo os déspostas das antigas civilizações orientais. O anjo virtuoso, no extremo oposto, era simbolizado pela frágil anglo-saxônica Lilian Gish, resgatada e trazida de volta para casa cheia de glória por cavaleiros da Ku-Klux-Klan depois de ter sido seqüestrada por homens negros ameaçadores, cheios de lascívia e de mãos impuras. Esse dualismo moral simplista foi reforçado, em 1927, pelo Código, elaborado por autoridades religiosas e adotado por Hollywood como uma autêntica forma de censura, a qual, ironicamente, conferia à indústria cinematográfica uma unidade e coerência ainda maior de símbolos e valores.
Eu afirmei, um pouco antes, que se tivesse que haver uma divisão da história do Brasil em função do surgimento de Hollywood, então o começo da nova era seria o ano de 1920. Há uma boa razão para isso. Os anos de guerra (1914-18) levaram o caos à indústria cinematográfica, exceto nos Estados Unidos. A indústria européia estava arruinada, e a América Latina não poderia mais importar filmes europeus ou importar celulose barata para a produção de seus próprios filmes. Como resultado, houve um boom da produção e exportação americana de filmes.
O único problema aconteceria em 1918, quando a epidemia de gripe espanhola matou mais gente em todo o mundo do que a própria guerra. Como decorrência do medo da epidemia, os cinemas e outros centros de lazer foram fechados por mais de um ano. Foi um ano terrível, com epidemia, guerras, revoluções, fome e morte. Quando, finalmente, os cinemas reabriram suas portas, no final de 1919, eles se tornaram uma febre: o grande lance era as loucuras da América. O número de cinemas multiplicou num espaço muito curto de tempo, as audiências chegaram a níveis jamais alcançados por qualquer outra forma de entretenimento.
Seria mais apropriado chamar os anos 20 como a Idade do Cinema do que a Idade do Jazz.
A partir daquele momento, pelo menos no que se refere ao Brasil, entretenimento era sinônimo de cinema, cinema era América, cinema americano era Hollywood e Hollywood era suas  estrelas. Assim, flores estrangeiras começaram a brotar do solo cultural brasileiro. Nos seus próprios estúdios, os produtores brasileiros fizeram o máximo para adotar os parâmetros e critérios técnicos de Hollywood, sem atingir bons resultados artísticos ou comerciais, por razões óbvias. Quando atingiram o seu melhor resultado, nos anos 40-50, produziram as “chanchadas”, comédias leves e picantes que não passavam de paródias de sucessos de Hollywood.
A coisa mais engraçada a respeito das “chanchadas” foi que elas eram a confissão de que jamais conseguiriam competir com a produção de Hollywood, lançando mão, por essa razão, do escracho. De maneira consciente, as “chanchadas” usavam cenários obsoletos, roupas velhas, personagens satíricos, além de clichês licenciosos. O público, que já tinha visto o original de Hollywood, em geral apreciava a paródia.
Assim, se Hollywood estabeleceu uma relação dramática e conflituosa com o resto do mundo, ao reescrever a história de um ponto-de-vista americano, o Brasil  equacionou o seu próprio dualismo através do modelo hollywoodiano. Uma das conseqüências disso, por exemplo, foi que, enquanto os personagens cômicos das “chanchadas” eram, em geral, representantes de grupos étnicos, pobres, analfabetos e rudes, a heroína, moldada em conformidade ao protótipo da “estrela”, era branca, elegante, com ares de princesa e pura, pronta para casar-se com outro homem branco e limpo. No limite, a parodia encontrava o dogma anglo-saxônico estabelecido pelo Código.
O cinema europeu
URSS: nos anos 20, os soviéticos queriam um cinema que, ao contrário de fantasiar a realidade, como Hollywood, construísse uma realidade essencialmente cinematográfica. Por exemplo, em ‘‘Outubro’’ (1927), sobre a Revolução de 1917, Sergei Eisenstein apresenta nas poltronas da sala do gabinete de governo não os ministros, mas seus sobretudos, etaforizando o exercício de funções burocráticas pelos homens de Estado. É o cinema que cria a sua própria leitura e interpretação do ‘‘real’’. Nos anos 30, o Realismo Socialista transformou o cinema soviético em mera peça de propaganda.
Alemanha: influenciado pela literatura e artes plásticas do começo do século, o expressionismo adotava o ponto de vista subjetivo, procurando explorar a realidade interior vivida pelos personagens. Com esse fim, trabalhava narrativas fantásticas, deformando as imagens da realidade externa e imediata, como ruas, casas, objetos, e abusava de sombras e penumbras. O ‘‘Gabinete do Doutor Caligari’’ (1919), de Fritz Lang, é o grande marco deste cinema. Nas décadas recentes, os mais conhecidos diretores alemães foram Werner Herzog, Rainier Werner Fassbinder e Wim Wenders.
França: nos anos 30, consagra a estética surrealista. Trabalhava com imagens provenientes do mundo inconsciente, dos sonhos. Um espanhol, Luis Buñuel, que filmava na França, foi o seu maior representante. Usava recursos ‘‘chocantes’’, como celebrar velório em restaurante, para causar estranheza. Seu filme mais conhecido, ‘‘O Cão Andaluz’’ (1928), foi realizado com a parceria do pintor Salvador Dalí. Nos anos 50/60, a Nouvelle Vague (‘‘nova onda’’) tematizou os dramas existenciais dos seus personagens, considerados mais importantes do que qualquer fato político. Filmes difíceis pela temática subjetiva e narrativa alinear, foram banidos do circuito comercial. Ilustram este movimento ‘‘Acossado’’ (1959) e ‘‘Os Incompreendidos’’ (1959), respectivamente de Jean-Luc Godard e François Truffaut. Walter Hugo Khouri desenvolveu esta linha no Brasil, em filmes como ‘‘Noite Vazia’’ (1964).
Itália: no final da Segunda Guerra, surge o Neo-Realismo. Sem melodramas, seus heróis são operários, camponeses e gente da classe média pobre. O cenário dos grandes estúdios é substituído pelo das ruas. Representam esta estética ‘‘Cidade Aberta’’ (1945), de Roberto Rosselini, e ‘‘Ladrão de Bicicleta’’ (1948), de Vittorio de Sica. Esta estética e temática foram traduzidas no Brasil pelo movimento do Cinema Novo . Nas três últimas décadas, o cinema italiano foi marcado pelo lirismo de Federico Fellini (‘‘Amarcord’’, ‘‘E la Nave Và’’, ‘‘Julieta dos Espíritos’’ etc.).
Boletim Mundo Ano 3 n° 4

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