sábado, 31 de dezembro de 2011

Plutão, Ser ou Não Ser?

Thales Trigo

Plutão perdeu seu título de o mais distante dos planetas, por decisão da última Assembléia Geral da União Astronômica Internacional (UAI), realizada no final de agosto, em Praga.
Desde tempo imemoriais, observando o céu, o ser humano percebeu que alguns objetos vagavam pelo firmamento em trajetórias diferentes das estrelas. As estrelas apresentam um movimento muito estável, que é resultado do movimento de rotação da Terra. Os outros corpos – os de trajetórias peculiares ou errantes – foram chamados de planetas pelos gregos.
Ao longo da história, a partir de observações a olho nu e, depois, com o advento do telescópio, usado por Galileu Galileu no início do século XVII, os planetas foram sendo “descobertos” e nomeados.
O último deles, justamente Plutão, foi descoberto a 18 de fevereiro de 1930 pelo astrônomo americano Clyde W. Tombaugh.
A partir desse conhecimento acumulado durante séculos estabeleceu-se a nossa “visão”do Sistema Solar – um conjunto de corpos que orbitam em torno de nossa estrela, o Sol. Naturalmente, o modelo do Sistema Solar passou por algumas “revisões” ao longo do tempo. No universo cultural ocidental, considerando a Grécia como berço dessa cultura, diversos modelos foram propostos, aceitos durante um período e depois substituídos.
Desde Aristóteles os nossos dias, em que utilizamos o modelo heliocêntrico, os modelos científicos são tentativas de tornarmos a natureza inteligível, isto é, entendermos como os processos naturais ocorrem.
A ciência, de certo modo, é uma ordenação desses modelos que, descritivos ou matemáticos, não passam de tentativas de descrevermos o mundo. Sob esse aspecto, o Sistema Solar com seus nove e conhecidos planetas era bastante prático.
As crianças, a partir de certa idade, às vezes precocemente, são capazes de “entender”o Sol no centro e os planetas girando ao seu redor. O modelo compunha- se de quatro planetas mais internos, pequenos e “sólidos” (Mercúrio, Vênus, Terra e Marte), quatro planetas gigantes, externos e gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno) e, lá bem distante, um outro planetinha gelado e “sólido”, que é Plutão. Esse modelo apresentava diversidade, o que pode se muito útil quando se exercita o pensamento científico.
Muitos associavam o modelo planetário com o próprio modelo atômico em escala reduzida: um núcleo central com carga positiva e um conjunto de elétrons, com cargas negativas orbitando o núcleo.
As diferenças existem e são relevantes, mas o que importa mesmo é o treino: pensar em modelos para entender a natureza, pelo menos de forma parcial.
Desde 1919, a UAI é responsável, entre outras coisas, pela classificação de objetos astronômicos, determinação de nomes de objetos e publicação de boletins diários sobre eventos astronômicos.
Depois de anos de debates, um comitê da UAI constituído por notáveis na área de estudos planetários propôs critérios para se definir um objeto como planeta.
Assim, a partir de agora, um objeto astronômico pode ser considerado planeta se:
1. orbitar uma estrela, sem ele mesmo ser uma estrela;
2. não for satélite de um planeta;
3. possuir massa suficiente para que seu campo gravitacional possa torná-lo praticamente esférico;
4. possuir força gravitacional suficiente para “limpar a sua órbita”, eliminando objetos de massa comparável à sua.
Plutão sempre gerou controvérsias. Ele é muito pequeno, com diâmetro de apenas 2.300 quilômetros. A Terra tem 12.750 quilômetros de diâmetro e a Lua, 3.480 quilômetros. Além disso, a órbita de Plutão é muito inclinada em relação ao plano do Sistema Solar, diferente dos outros planetas, o que indicaria que não se formou junto com os demais. Finalmente, Plutão forma um sistema binário com Caronte, um objeto tradicionalmente descrito como seu maior satélite. Isso significa que os dois giram em torno de um centro de gravidade entre eles.
Quando rebaixou Plutão à condição de “planeta-anão”, a UAI não estava especialmente preocupada com o Sistema Solar.
A decisão reflete muito mais o interesse em objetos que estão sendo observados fora do Sistema Solar.
Até agora, uma dezena de planetas já foram detectados orbitando outras estrelas.
Com a melhoria nas técnicas de observação, muitos outros devem ser descobertos e catalogados nos próximos anos, de forma que um padrão mais criterioso precisava ser estabelecido. A classificação de novos sistemas planetários passa por dois estágios: a da estrela central, o que já é feito há décadas pois esse tipo de observação é mais simples, uma vez que os objetos são muito luminosos, e a classificação dos próprios planetas.
No futuro próximo, o estudo de planetas fora do Sistema Solar será um dos mais instigantes ramos da astronomia.
O campo abrange a dinâmica planetária, isto é, o estudo das órbitas e das situações de estabilidade; a física da formação dos planetas, com todas as implicações associadas à própria criação do Sistema Solar; e, naturalmente, análises sobre eventuais possibilidades da existência de vida.
Certamente, a exclusão de Plutão do grupo planetário é apenas técnica e, durante um bom tempo, Plutão continuará sendo considerado como um planeta – principalmente pelos mais velhos.
Nos Estados Unidos, previsivelmente, um grupo de astrônomos se rebelou contra a decisão da UAI. Eles planejam convocar, no próximo ano, uma reunião consagrada a rediscutir o tema existencial: Plutão, ser ou não ser? Alheio a isso tudo, Plutão segue na sua trajetória distante e fria.

Boletim Mundo n° 6 Ano 14

SANTOS DUMONT, PIONEIRO DO PODER AÉREO

Cem anos atrás, o vôo inaugural do 14 Bis desvendou novos caminhos para a globalização e para a arte da destruição.

Há um século, em 23 de outubro de 1906, em Paris, perante inúmeras testemunhas, o 14 Bis alçou vôo e fincou um marco histórico na aventura da aviação. O brasileiro Alberto Santos Dumont, segundo a versão preferida entre nós, tornou-se o primeiro homem a realizar um vôo controlado a bordo de um veículo aéreo mais pesado que o ar.
A primazia de Santos Dumont não é aceita na maior parte do mundo. O francês Clement Ader fez um vôo mantido em segredo militar em 1890, mas seu aeroplano não era uma máquina muito controlada. O britânico Percy Pilcher pode ter sido o pioneiro, em 1899, mas seu vôo não foi adequadamente documentado. O americano Gustave Whitehead fez um vôo registrado por jornais, mas não fotografado, em 1901. Os também americanos Orville e Wilbur Wright realizaram seus vôos iniciais em 17 de dezembro de 1903 e são geralmente considerados os “pais da aviação”.
O 14 Bis, contudo, realizou o primeiro vôo oficialmente fotografado sem ajuda de catapultas, trilhos ou ventos excepcionais. De certa maneira, a atual Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), uma das raras exportadoras de alta tecnologia do país, representa uma continuidade da experiência pioneira daquele que recebeu, no Brasil, a alcunha de “pai da aviação”.
Desde Santos Dumont, a aviação apresentou rápida e contínua evolução, tanto no que diz respeito ao uso de aviões no transporte voltado para fins comerciais (carga e passageiros), como no que diz respeito aos usos de caráter militar.
A expansão do transporte de cargas em larga escala teve grande aceleração a partir do final da Segunda Guerra Mundial e o transporte de pessoas “explodiu” com o aumento da atividade turística, que abrange lazer e negócios, a partir da segunda metade da década de 80.
O maior fluxo de cargas e passageiros, assim como o maior número de rotas aéreas concentram-se no hemisfério norte, tendo como pontos nodais os Estados Unidos, os países da Europa Ocidental e os do Extremo Oriente. Não é casual que esse maior movimento ocorra nas áreas do mundo onde se localizam as economias mais desenvolvidas.
Os aeroportos com o maior movimento de passageiros são os de Atlanta, (82 milhões) e de Chicago (75 milhões), ambos nos Estados Unidos. O de maior tráfego aéreo internacional é o de Heatrow, em Londres (média de 460 mil pousos/decolagens/ano). O de maior movimento de cargas é o de Memphis, nos Estados Unidos.
O aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, um dos mais movimentados do “sul subdesenvolvido”, ocupa apenas o 65º lugar no ranking de passageiros.
O desenvolvimento da aviação teve repercussões no pensamento geopolítico. Uma das primeiras teorias sobre a grande estratégia foi a do poder marítimo, desenvolvida pelo almirante americano Alfred Thayer Mahan, no final do século XIX. Mahan, interessado no desenvolvimento da marinha de guerra dos Estados Unidos, defendia a idéia de que o controle dos mares para fins comerciais e militares era um fator crucial para que um país tivesse relevância política no contexto internacional. A construção do Canal do Panamá, unindo os oceanos Atlântico e Pacífico através do istmo centro-americano, inspirou-se no pensamento de Mahan.
Já a teoria do poder continental teve no britânico Halford J. Mackinder seu grande expoente. Sua idéia principal, exposta no início do século XX, baseava-se na tese de que o controle sobre determinada porção do território da Eurásia – especificamente as planícies russa e polonesa – funcionaria como plataforma para o domínio de toda a Eurásia. Assim, quem controlasse o heartland (região nuclear) estaria em condições de exercer um poder mundial. As idéias de Mackinder influenciaram a delimitação das novas fronteiras surgidas na Europa Oriental ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-18), cujo exemplo emblemático foi a criação do “corredor polonês” de Dantzig.
A aviação revelou todo o seu poder na Segunda Guerra Mundial (1939-45), quando a Grande Alemanha de Hitler sofreu incessantes campanhas de bombardeios aéreos arrasadores. Enquanto as bombas arruinavam as velhas cidades alemãs, Alexander De Seversky elaborava a tese da supremacia do poder aéreo. De Seversky nasceu na Geórgia, que pertencia ao Império Russo, em 1894, serviu à Rússia como piloto de caça na Primeira Guerra Mundial e exilou-se nos Estados Unidos em 1927, tornando- se cidadão americano. Segundo ele, a cena principal e decisiva dos conflitos modernos não estaria na terra, nem no mar, mas no “oceano de ar”. Essas considerações permeiam ainda hoje o conceito de poder aéreo.
A figura jurídica do espaço aéreo nacional surgiu com o advento do avião. Até a Primeira Guerra Mundial, o sobrevôo de um país não era objeto de restrições. A crescente importância militar da aviação levou primeiramente à limitação do sobrevôo, que ficava controlado apenas abaixo de determinada altitude. Quando se percebeu o valor da aviação na observação e coleta de informações cada vez mais precisas sobre localizações estratégicas e aumentou o poder de destruição de aviões em vôo alto, as restrições para o uso dos espaços aéreos nacionais foram apertadas.
Atualmente, o conceito de soberania sobre o espaço aéreo está relacionado com a capacidade de cada país em impedir o sobrevôo de seu território por aeronaves não autorizadas.
A implantação do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), no Brasil, ilustra esse tipo de preocupação.
As tecnologias aeroespaciais colocam em xeque o conceito de soberania sobre os espaços aéreos nacionais. As grandes potências, detentoras de satélites-espiões, em órbitas semi-estacionárias e equipados com sofisticados sistemas de observação, têm a capacidade de obter informações sobre todos os territórios nacionais.
Mas, em certas circunstâncias, o poder aéreo serve a grupos armados não-estatais. Não convém esquecer que o século XXI foi inaugurado, na política mundial, com os ataques terroristas às Torres Gêmeas e ao Pentágono, levados a cabo por meio do invento de Santos Dumont.

Boletim Mundo n° 6 Ano 14

NA BULGÁRIA, SEM LENÇO, COM DOCUMENTOS

André Bacic Olic

Minha viagem para a Bulgária começou pela Eslovênia. Na verdade, ela havia se iniciado, sem eu saber, um ano antes quando consegui um estágio numa fazenda de produtos orgânicos próxima a Umag, uma cidade da Croácia, terra de meus avós paternos, localizada na península da Ístria, bem próxima da Itália. Em troca de alimentação e estadia, fiquei trabalhando ali por seis meses antes de conseguir outros estágios semelhantes na Áustria e na Eslovênia.
Em Liubliana, capital da Eslovênia, necessitei de um visto para atravessar a Sérvia e me dirigir à Bulgária, para um novo estágio. Fiz a viagem de Liubliana a Belgrado, capital da Sérvia, via Zagreb, capital da Croácia, de trem. Enquanto estive acordado, meus olhos viram paisagens de planícies com extensos campos de cultivo.
Senhoras com lenço na cabeça carpiam a terra.
Ao redor de Belgrado, favelas. Acho que a população da periferia da cidade é constituída, principalmente, por ciganos (o povo rom, como eles se denominam).
Muitos carros de modelos antigos. No centro, uma manifestação estava sendo preparada: segundo me informaram, ela tinha como tema a “aproximação” da Sérvia com União Européia.
Belgrado é a cidade onde os rios Danúbio e Sava se encontram. Num morro frente a este ponto ficam as muralhas da cidadela de Kalembegdan, construída pelos celtas e ampliada pelos romanos.
Segundo os locais, em sua longa história, a cidade foi destruída e reconstruída dezenas de vezes.
O  trem de Belgrado partiu para Sófia, capital da Bulgária, levando muitos passageiros que me pareceram de origem turca.
Senhoras portando duas a três malas. Não pareciam conter apenas pertencentes pessoais.
Lembraram-me os nossos sacoleiros.
Já no trem, um turco troncudo pôs suas malas no bagageiro. Ofereceu-me um refrigerante extremamente doce e, sem pedir permissão, pegou minha mala e colocou por cima da dele. Tirei minha mala dali, mas ele voltou a colocar as malas na mesma posição. Falando em turco e búlgaro, me fez entender que eu era um civil “normal”, sem problemas de fiscalização.
Então, ele quis esvaziar a minha mala e colocar nela os pacotes de cigarros que transportava em sua mala.
Tentei, em vão, explicar-lhe que eu não era um civil “normal”, que passaporte brasileiro gera desconfiança de tráfico de drogas.
Ele ameaçou jogar minha mala pela janela do trem. No fim, acho que entendi.
Ele queria que eu deixasse a cabine só para ele. Resumo: fui para o fim do vagão.
Na fronteira da Sérvia com a Bulgária o trem ficou um tempão parado. Policiais fizeram uma fiscalização bem detalhada, mas não abriram minha mala.
Em Sófia arrumei uma carona até Buinovo, onde fica a fazenda onde eu cumpriria o estágio. Buinovo situa-se nas proximidades das montanhas Rodope.
Rodope, montanhas destinadas à tristeza.
Foi lá que, segundo a lenda, Orfeu cantou as lágrimas da perda de sua amada Eurídice, tragada numa das cavernas da região, o portal de entrada do reino de Hades.
Buinovo tem cerca de três centenas de habitantes, que parecem viver em feliz harmonia. Comparada com as vilas das planícies do norte do país, tem-se a sensação de que, em Buinovo, o alvorecer se atrasa. Todo o processo vegetativo se estabelece com sofrimento.
Fiquei numa fazenda que conduz um projeto de agricultura ecológica, sob o comando do casal britânico Ian e Catrin.
Gente muito dinâmica em idéias e ação.
Para a época do verão não havia muito trabalho a fazer na horta. Carpir um pouco, dar água a alguma planta que necessitasse de cuidados especiais... Com pouco trabalho a fazer, aproveitei para conhecer alguns lugares do país. Um dos destinos foi a cidade de Plovdiv, nas planícies fora da região mais montanhosa.
Plovdiv é a segunda maior cidade búlgara. Dizem que Roma e Atenas não são tão antigas como Philippolis, um dos antigos nomes de Plovdiz. Dizem também que Plovdiv é contemporânea de Tróia. Estava caminhando pela estrada que leva ao entroncamento com a cidade de Smolian quando um veículo policial me parou.
Scheisse! Vamos, liberem-me logo. Afinal tenho ou não cara de simples turista?
“Az ne razbiram bulgarsko”, ou seja, “não entendo nada de búlgaro”.
Os policiais analisaram detidamente o meu passaporte e por fim pediram-me que entrasse no carro. Assim, conheci a delegacia da cidade de Devin. Meia hora sentado numa mesa esperando. Um policial brinca e cita o nome do jogador Sócrates.
Por fim, liberam-me após um registro e dizem que tenho permissão de dois meses de estadia na Bulgária.
Apesar de tudo, gostei muito dos dois meses que passei na Bulgária. De certa forma, senti-me um pouco pioneiro já que nunca ouvi falar de brasileiros no país. A Bulgária não é um pólo de atração, como os países da Europa Ocidental.
Muito pelo contrário: o país se encontra ainda com um pé na estrutura planificada, na “lama” dos tempos do regime comunista. Nem é uma destinação turística consagrada, exceto pelo trecho do litoral do Mar Negro, com praias de areias brancas e uma infra estrutura criada para atender a máfia russa ou a classe média nórdica, em busca de sol e dos baixos preços dos pacotes de verão.
Adorei a hospitalidade das pessoas, as tradições e referências culturais, as paisagens, o idioma. No fim de junho, precisava ganhar alguma grana para me sustentar e resolvi partir rumo ao norte. Senti-me um pouco desorientado e uma melancolia indefinível me envolveu. É difícil deixar lugares e pessoas que possivelmente não se voltará a rever. E, na Bulgária, há certamente muito a se descobrir.

Boletim Mundo n° 6 Ano 14

REATORES VERDES

As usinas nucleares representaram um dos alvos prediletos da artilharia dos ambientalistas. Hoje, ambientalistas célebres estão entre seus principais defensores.

Sir David King, o cientista-chefe do governo, enxergava longe ao afirmar que o aquecimento global é uma ameaça mais séria que o terrorismo. Ele pode ter até mesmo subestimado-a pois, desde que se pronunciou, novas evidências de mudanças climáticas sugerem que elas poderiam representar (...) o maior perigo enfrentado pela civilização até hoje. (...) Nós não temos tempo para experimentações como fontes visionárias de energia; a civilização encontra-se sob perigo iminente e deve usar agora a energia nuclear – a única segura e abundante fonte de energia – ou sofrer a dor que lhe será infligida por nosso planeta ultrajado.”
O alerta, publicado no jornal The Independent em maio de 2004, não emanou de alguma poderosa empresa do setor nuclear mas de James Lovelock, um dos gurus dos movimentos ambientalistas. Lovelock, o criador da Hipótese Gaia, segundo a qual a Terra é um organismo vivo e um sistema que se auto-regula, chocou os “verdes” do mundo inteiro ao ironizar o “medo irracional” que cerca a energia nuclear, atribuindo-o à “ficção de estilo hollywoodiano”. Ele classificou a energia nuclear como “a mais segura” entre todas as fontes energéticas e conclamou os “verdes” a engajarem-se na defesa da substituição das usinas térmicas por reatores nucleares.
A produção de energia elétrica por meio de um reator nuclear começou, experimentalmente, nos Estados Unidos em 1951. A primeira usina nuclear comercial foi instalada três anos depois em Obninsk, na antiga União Soviética. O entusiasmo pela nova fonte energética difundiu-se nas décadas de 70 e 80, estimulado pelos “choques de preços” do petróleo, o que levou a geração de origem nuclear a atingir quase um quinto da produção elétrica total. Contudo, desde o final da década de 80, sob o impacto da queda dos preços do petróleo, o ritmo de construção de novas usinas experimentou forte redução e a alternativa nuclear chegou a ser descartada pelos analistas.
O acidente na usina americana de Three Mile Island, em 1979, com a fusão parcial do núcleo do reator, não provocou escape muito grande de radioatividade mas teve impactos políticos desastrosos. Depois dele, a campanha “verde” contra as usinas nucleares ganhou fôlego e audiência.
Mas muito pior foi o acidente da usina soviética de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986, quando nuvens radioativas escaparam do reator e, levadas pelos ventos, espalharam- se pelo noroeste europeu, até o leste da América do Norte. Cerca de 330 mil pessoas tiveram que ser definitivamente removidas de uma ampla área em torno da usina. A maior parte da radioatividade atingiu a Belarus e seus impactos poderão se fazer sentir por décadas. Contudo, até hoje, não se verificaram os dramáticos aumentos previstos na incidência de leucemia.
Chernobyl associou-se à conjuntura econômica dos mercados de energia, ajudando a decretar, talvez muito prematuramente, a morte das usinas nucleares. Nos Estados Unidos, a construção de novos reatores já andava em marcha lenta desde Three Mile Island. Na Europa, alguns países (como a Áustria, a Irlanda e a Suécia) decidiram suspender planos de construção mesmo antes do acidente ucraniano mas, depois dele, a tendência se amplificou.
Na Itália, os eleitores votaram em plebiscito, em 1987, pelo fechamento dos quatro reatores do país.
Na década de 90, verificou-se uma lenta recuperação no ritmo global de construção de reatores, pois diversos países asiáticos (China, Índia, Japão e Coréia do Sul, especialmente) engajaram-se na via nuclear. O acelerado crescimento econômico de alguns deles, junto com a forte dependência das importações de petróleo, sustentaram a opção pela geração nuclear de energia elétrica. Simultaneamente, e como efeito de Chernobyl, as tecnologias das usinas tornavam-se mais seguras e eficientes.
Dezesseis países dependem da energia nuclear para produzir um quarto ou mais da sua eletricidade. Entre eles, a França gera algo como três quartos de sua energia elétrica em usinas nucleares, enquanto Japão e Alemanha dependem de reatores nucleares para produzir mais de um quarto de sua eletricidade. Nos Estados Unidos, a participação nuclear é de cerca de um quinto do total.
A tendência recente de expansão da geração nuclear na Ásia modificará em profundidade o cenário global na próxima década. Até 2012, China, Coréia do Sul, Índia e Japão completarão usinas com capacidade total superior a 19 mil MW, ou algo em torno de 70% do aumento global da produção nuclear.
O argumento econômico para a opção nuclear tornou-se muito poderoso com os aumentos recentes de preços do petróleo, que refletem a expansão da demanda e o fraco ritmo de descoberta de novas reservas. O espectro do aquecimento global abre um novo capítulo no debate sobre os significados ambientais das usinas nucleares.
Os ambientalistas pró-nuclear ainda são minoritários, mas esgrimem argumentos ponderáveis. Eles mostram que a radiação emitida por usinas nucleares é insignificante, se comparada às emissões naturais e às derivadas de procedimentos médicos, e enfatizam que o “lixo nuclear” é um problema muito exagerado pela mídia. A França, com seus 58 reatores, produz anualmente 3 toneladas per capita de lixo de vários tipos, que incluem 100 quilos de materiais tóxicos, dos quais apenas um quilo é “lixo nuclear” e menos de 50 gramas são materiais radioativos com meia-vida superior a 30 anos. O “lixo nuclear” é selado em blocos de concreto ou de vidro, se é altamente radioativo.
O mais forte argumento dessa minoria de ambientalistas é a comparação entre os níveis de emissão de dióxido de carbono (CO2) de países com matrizes energéticas diferentes.
A França, que gera eletricidade principalmente em usinas nucleares e hidrelétricas, emite apenas 6,7 toneladas per capita anuais de CO2. É um nível baixo para um país rico, similar aos da Suécia e da Noruega. Grã-Bretanha e Alemanha, que dependem muito mais de usinas térmicas, emitem anualmente 10 a 12 toneladas per capita.
Nos Estados Unidos, as emissões atingem espantosas 20 toneladas.

Boletim Mundo n° 6 Ano 14

Do Projeto Manhattan ao TNP

Bombas Atômicas  existem para assustar os que têm nervos frágeis”.
A frase célebre do ditador soviético Joseph Stalin foi pronunciada em setembro de 1946, treze meses depois dos bombardeios nucleares americanos de Hiroshima e Nagasaki e durante o desenvolvimento das crises diplomáticas que conduziriam à eclosão da Guerra Fria, no início de 1947. A União Soviética ainda precisaria de três anos para realizar o primeiro teste da sua bomba atômica, em 29 de agosto de 1949, e Stalin pretendia enviar uma mensagem de firmeza a Washington, assegurando que não se intimidaria diante do monopólio nuclear americano.
Hiroshima e Nagasaki representaram o ponto de chegada de um esforço científico e tecnológico iniciado pelos Estados Unidos em 1939, quando começou a guerra na Europa, com a instalação do Comitê do Urânio. O temor de que a Alemanha alcançasse antes a bomba, propagado pelos britânicos, não tinha fundamento mas serviu para transformar o pequeno comitê no colossal Projeto Manhattan. Sob a direção científica do físico Robert Openheimer, o programa construiu o artefato detonado no primeiro teste nuclear da história, em Alamo gordo (Novo México), em 16 de julho de 1945, e as bombas que provocaram a rendição japonesa.
A incineração em massa de civis que marcou o início da era nuclear e o medo de um futuro no qual a União Soviética também teria armas atômicas levaram Washington a elaborar o Plano Baruch, uma proposta que continua, até hoje, a suscitar interpretações divergentes. Apresentado na primavera de 1946 por Bernard Baruch, representante americano na ONU, o plano propunha o banimento das armas atômicas e o controle do uso pacífico da energia nuclear, no mundo inteiro, por uma autoridade subordinada à ONU. Os Estados Unidos dispunham-se a entregar suas armas atômicas a essa autoridade, para serem destruídas, mas exigiam que todos os países concordassem com um rígido sistema de inspeções internacionais.
Stalin zombou das armas atômicas justamente ao anunciar a sua recusa do Plano Baruch. Os soviéticos estavam a caminho da bomba, não acreditavam na imparcialidade da ONU e sabiam que, do ponto de vista dos Estados Unidos, a posse monopolista da tecnologia das armas nucleares bastava para reconstituir, em pouco tempo, o arsenal ao qual se dispunham a renunciar. A “corrida nuclear” começa na hora do fracasso do Plano Baruch. Os Estados Unidos devotam somas vultosas à construção de artefatos e a União Soviética acelera seus esforços para tornar-se uma potência nuclear.
Sob o impacto da “corrida nuclear”, em dezembro de 1953, o presidente americano Dwight Eisenhower dirigiu-se à ONU para propor negociações diretas entre as grandes potências, com vistas ao uso pacífico do átomo. Esse discurso – o “Átomos pela Paz” – continha a idéia original de uma agência internacional para controlar a difusão da tecnologia nuclear. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) foi estabelecida em 1957, com sede em Viena (Áustria). Ela é uma agência especializada da ONU e funciona como um fórum de cooperação para reduzir a insegurança nuclear.
A Grã-Bretanha participou das pesquisas do Projeto Manhattan e tornou-se uma potência nuclear em 1952, ao explodir seu primeiro artefato. O teste inicial da França aconteceu em 1960 e, anos depois, o país se retirou do comando militar unificado da OTAN para manter sob controle nacional seu arsenal nuclear, impedindo que ele ficasse subordinado a um general americano. A China, para surpresa dos serviços de inteligência ocidentais, fez seu teste nuclear pioneiro em 1964.
Esse ciclo inicial de proliferação evidenciou os riscos de difusão descontrolada de bombas atômicas, que converteria conflitos localizados em potenciais guerras nucleares.
Diante dessa ameaça, as duas superpotências nucleares articularam-se em defesa da proposta de um tratado geral destinado a interromper a busca dessas armas por outras nações. O Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) foi firmado em 1968 e entrou em vigor dois anos depois. O texto original do tratado previa a sua vigência por 25 anos. Em 1995, ele foi estendido indefinidamente.
Contando atualmente com 188 Estados signatários, o TNP é um compromisso assimétrico, que separa os Estados em duas categorias: as cinco potências nucleares oficiais (Estados Unidos, Rússia, China, Grã- Bretanha e França) e os Estados não-nucleares. Nos seus termos, os que não têm prometem jamais ter, em troca de uma vaga declaração dos que têm segundo a qual um dia deixarão voluntariamente de ter. Os Estados não-nucleares submetem-se, além disso, a um rigoroso regime de inspeções de suas instalações nucleares destinadas a fins pacíficos, que são de responsabilidade da AIEA. O não cumprimento dessas obrigações sujeita os infratores a sanções econômicas ou políticas, a serem impostas pela ONU.
O TNP não é uma longa declaração vazia. Ele foi capaz de forçar alguns Estados a renunciarem às armas nucleares.
A África do Sul, talvez com assistência israelense, conduziu um programa nuclear nos anos 70 e possivelmente realizou um teste no Atlântico em 1979, mas assinou o tratado em 1991 e destruiu seu pequeno arsenal. As repúblicas da antiga União Soviética entregaram seus arsenais à Rússia, após a desagregação da superpotência comunista. No outro pólo, os cinco Estados do “clube nuclear” assinaram, em 1996, o Tratado de Banimento de Testes Nucleares, que proíbe todos os testes de campo com armas atômicas.
Mas o TNP não conseguiu evitar a proliferação, na Índia, no Paquistão e em Israel. Hoje, sob o impacto dos programas da Coréia do Norte e do Irã, ele vive a mais profunda crise da sua história.

Boletim Mundo n° 6 Ano 14

AVENTURAS DE BUSH AMEAÇAM ESTIMULAR NOVA CORRIDA NUCLEAR NO MUNDO

HOJE, O ARSENAL AMERICANO DE ARMAS ATÔMICAS (...) EXCEDE EM MUITAS VEZES O TOTAL EQUIVAMENTE DE TODAS AS BOMBAS E PROJÉTEIS DISPARADOS DO CONJUNTO DOS AVIÕES E ARMAS DE ARTILHARIA EM TODOS OS TEATROS DE GUERRA DE TODOS OS ANOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. (...) SOBRE O PANO DE FUNDO SOMBRIO DA BOMBA ATÔMICA, OS ESTADOS UNIDOS NÃO QUEREM MERAMENTE EVIDENCIAR FORÇA, MAS TAMBÉM O DESEJO E A ESPERANÇA DE PAZ. (...) OS ESTADOS UNIDOS PROCLAMAM DIANTE DE VOCÊS, E PORTANTO DIANTE DO MUNDO, SUA DETERMINAÇÃO DE AJUDAR A SOLUCIONAR O ATEMORIZANTE DILEMA ATÔMICO – A DEVOTAR SEUS INTEIROS CORAÇÕES E MENTES PARA ENCONTRAR O CAMINHO PELO QUAL A MIRACULOSA INVENTIVIDADE HUMANA NÃO SEJA CONSAGRADA À SUA MORTE, MAS À SUA VIDA.
(“ÁTOMOS PELA PAZ”, DISCURSO DO PRESIDENTE DWIGHT D. EISENHOWER À ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 8 DE DEZEMBRO DE 1953)

Um dia o petróleo se esgotará. Usar esse produto nobre para operar fábricas e iluminar residências é uma perda. (...) Prevemos produzir, no menor prazo possível, 23 mil megawatts de eletricidade utilizando centrais nucleares”. O autor dessa frase, datada de outubro de 1974, foi o então imperador iraniano Reza Pahlevi, ao justificar um decreto que lançava o programa nuclear de seu país. O detalhe: os Estados Unidos, na ocasião, apoiaram a iniciativa. No contexto da Guerra Fria, o xá era um precioso aliado, situado numa região estratégica da Ásia. Trinta anos depois, o programa nuclear iraniano é apontado pela Casa Branca como a mais elevada expressão do terrorismo internacional.
Explica-se: após a revolução de 1979, que depôs o xá, o Irã passou a integrar o campo dos inimigos de Washington.
A Casa Branca ataca violentamente o programa de enriquecimento do urânio do Irã. Por iniciativa do presidente George Bush, a “questão iraniana” foi levada ao Conselho de Segurança (CS) da ONU, que, no limite, pode recorrer a uma intervenção militar internacional para impedir o prosseguimento de seu programa nuclear. Só não houve uma escalada militar maior na região, até o momento, porque Rússia e China, também integrantes do CS, não se dispuseram a apoiar as iniciativas dos Estados Unidos. Mesmo que a hipótese de uma intervenção militar direta contra o Irã seja pouco provável na atual conjuntura mundial, principalmente após o fiasco israelense no Líbano, a pressão sobre o regime de Teerã acentua as tensões internacionais.
Ao mesmo tempo em que ataca o Irã, a Casa Branca apóia abertamente a entrada da Índia no clube dos países nucleares.
Em março de 2003, durante uma visita a Nova Délhi (capital da Índia), o Bush e o primeiro-ministro Manmohan Singh anunciaram a concretização de um “pacto nuclear” que permite ao país asiático produzir e ampliar o seu arsenal de armas atômicas, além de energia para necessidades civis. A intenção de concluir o acordo fora anunciada em julho de 2005, durante uma visita de Singh aos Estados Unidos, rompendo uma moratória de três décadas, durante as quais os Estados Unidos não venderam combustível nuclear e componentes de reator aos indianos.
Em Washington, tanto os democratas quanto alguns republicanos partidários de Bush criticaram o acordo com a Índia, que ainda terá que ser submetido ao Congresso dos Estados Unidos. Inicialmente, previa-se que ele seria votado em setembro, logo após o término do recesso parlamentar americano.
Os críticos do acordo alegam que o “tratamento especial” concedido à Índia daria mais argumentos ao Irã, que aponta a existência do arsenal nuclear israelense (pelo menos cem ogivas nucleares, segundo cálculos conservadores) como prova da parcialidade da política externa da Casa Branca, Além disso, criaria uma nova área de atrito com o aliado Paquistão, que mantém com a Índia uma tensa relação de disputa sobre a posse do território da Caxemira. Mas, sobretudo, provocaria a China. O programa nuclear indiano foi iniciado como uma resposta à derrota sofrida pelo país na guerra travada com a China, em 1962. Uma das possíveis conseqüências da aprovação do acordo com Nova Délhi seria o estímulo à corrida armamentista na região, e a desmoralização completa do TNP. A China poderia se sentir autorizada a fornecer assistência ao programa nuclear do Paquistão e a ampliar o seu apoio à Coréia do Norte, cuja política nuclear desafia abertamente a Casa Branca.
Como explicar, então, a atitude de Bush, apesar de todos os inconvenientes? Trata-se, precisamente, da percepção neoconservadora que elege a China como a grande rival dos Estados Unidos no século 21.
Durante os anos da Guerra Fria (entre Estados Unidos e União Soviética), a aproximação entre Washington e Pequim, arquitetada por Henry Kissinger, assessor de Segurança Nacional de Richard Nixon, correspondeu a uma tentativa de isolar Moscou e dividir o movimento comunista internacional. Com o fim da Guerra Fria e da suposta ameaça soviética, essa política perdeu o sentido. Houve um óbvio rearranjo no mapa mundial do poder.
Para a equipe neoconservadora conduzida à Casa Branca com a vitória eleitoral de Bush, a China passa a ser a ameaça potencialmente mais perigosa à hegemonia mundial dos Estados Unidos.
O cálculo é simples: se a economia chinesa continuar crescente no ritmo atual (entre 7% e 9% ao ano), em duas décadas o seu PIB será equiparado ao dos Estados Unidos, o que lhe permitirá uma capacitação militar equivalente. Como potência asiática, a China poderá pretender disputar o controle sobre a Eurásia, região chave no século 21, por abrigar 75% da população mundial, produzir 60% do PIB planetário, conter a maior parte dos recursos naturais do planeta, incluindo 75% de suas reservas conhecidas de energia e concentrar o poder nuclear (os Estados Unidos são a única potência nuclear que não faz parte da Eurásia).
O petróleo, obviamente, ocupa um lugar central na disputa, ainda mais por ser a China extremamente dependente de sua importação para sustentar o crescimento da economia. Além das já conhecidas reservas situadas no Oriente Médio, os cinco países da bacia do Cáspio – Azerbaijão, Cazaquistão, Irã, Rússia e Turcomenistão – possuem reservas estimadas de até 200 bilhões de barris de petróleo e um volume comparável de gás. A estratégia americana para a Eurásia desenha um “anel” em torno da Rússia, ao redor da bacia do Cáspio (isso explica a invasão do Afeganistão, em 2001) e agora cria um “cordão sanitário” em torno da China. Não por acaso, os Estados Unidos propõem que junto com o Japão, tradicional aliado, a Índia passe a integrar o CS, em caráter permanente.
É claro que o clima de pânico neo-conservador anti-chinês é muito exagerado, como era, durante a Guerra Fria, o terror artificialmente criado contra a “invasão vermelha”. Primeiro, porque grande parte do sucesso comercial chinês deve-se à atuação de corporações americanas instaladas no país. Segundo, porque longe de ser um “monstro”, a China ajuda a financiar a economia deficitária americana (já que os chineses compram dezenas de bilhões de dólares de títulos do Tesouro americano). Finalmente, a China funcionou, até agora, como potência estabilizadora na Ásia, em especial no que se refere a conter as tendências mais radicais da Coréia do Norte.
Isso tudo pode mudar com as aventuras de Bush. Pior para o mundo, bom para os que lucram com o comércio de armas.

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O ÁTOMO TUPINIQUIM

Com o fim do governo militar, o Programa Nuclear Paralelo foi desativado. Mas a Casa Branca não diminuiu as pressões sobre o Brasil. Nos últimos anos, os EUA estiveram à frente de denúncias a respeito da falta de controle internacional sobre a tecnologia de ultra centrifugação de urânio, desenvolvida de forma independente pelo Brasil, diante da resistência dos EUA, Rússia, França, Japão, China e do consórcio Alemanha/Grã-Bretanha e Holanda em transferir tecnologia.
Só que agora, o que estava em jogo não era mais a bomba atômica, mas a disputa de um rico mercado de fornecimento internacional de urânio enriquecido.

O Brasil deve ou não construir Angra 3?
SIM!
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho - Coronel da Reserva do Exército e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp.
Angra 3 deve ser construída, como todo o programa nuclear. O Ministério de Minas e Energia alega que o custo das hidro e termoelétricas é mais baixo. O Ministério de Ciência e Tecnologia rebate: o material para a instalação de Angra 3 custou entre US$ 700 e 800 milhões e já foi comprado; mesmo que seja necessário o dobro dos investimentos, o que foi gasto não pode ser desperdiçado. O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, diz que não há saída segura aos dejetos nucleares e nem aos reatores. Ainda assim, se o Brasil possui a 3ª ou a 4ª maior reserva de urânio do mundo e uma planta industrial, ele pode participar de um mercado que cresce com o interesse mundial. As potências questionam nosso programa nuclear. Projetos secretos? Não, os fins são pacíficos, temos que atender necessidades médicas, agrícolas e energéticas e por isso brigamos pelo urânio enriquecido. Sofremos pressão para parar, mas não vamos atestar falência. O reator de Angra 3 vai ser mais seguro do que os de Angra 1 e 2. Segurança absoluta não há em nenhum tipo de energia: o rompimento de uma barragem provocaria um verdadeiro tsunami, mas como o efeito nocivo da radioatividade é conhecido, alardeiam mais. Segurança não deve ser entrave: 30% da energia utilizada na Alemanha é nuclear; na Suécia, 45%; no Japão 31%; no Reino Unido, 23% etc. Além disso, como a energia hidrelétrica, a nuclear é limpa, mas não é finita. Já em relação à termoelétrica, a vantagem é decisiva: a energia nuclear não provoca efeito estufa. Por hora, o custo é mais elevado, mas quanto mais usar, mais barato vai ficar.

NÃO!
Frank Guggenheim é ambientalista e diretor executivo do Greenpeace Brasil Somos contrários à construção de Angra 3, pois usinas nucleares são caras. O Programa Nuclear já custou cerca de US$ 40 bilhões; Angra 1 e 2 custaram US$ 20 bilhões; a Eletro nuclear e as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), estatais deficitárias, custam R$ 2 milhões por dia e esse déficit é coberto pelo subsídio à energia nuclear, cobrado na conta de luz dos brasileiro. Usinas nucleares são ultrapassadas. Países como Alemanha, Espanha e Inglaterra estão abandonando a tecnologia. “Vagalumes”, como são conhecidas devido às constantes paralisações por falhas técnicas, Angra 1 e 2 produzem apenas 2% da eletricidade no Brasil.
Usinas nucleares são sujas e perigosas. Pelo lixo atômico que produzem e que permanece perigoso por milhares de anos, e pelo risco de transporte e acidentes, como o de Chernobyl e Three Miles Island. Por trás de Angra 3 estão: o sonho de retomada do Programa Nuclear brasileiro, idealizado durante os “anos de chumbo”; o projeto do submarino nuclear, que consumiu 10 anos de estudos e US$ 1 bilhão em investimentos, e precisará agora de outros 10 anos e mais US$ 1 bilhão para ser finalizado; o processo de enriquecimento de urânio, que levará 70 anos para amortizar o investimento realizado e a proliferação do risco da radiação pelo país, com a implantação de reatores nucleares no Norte e Nordeste. O Greenpeace acredita que a vocação brasileira está nas fontes renováveis: hidrelétricas, eólica, solar e de biomassa. Fontes que geram energia barata, limpa e segura.

Brasileiros com Saddam Hussein
Cientistas brasileiros colaboraram, nos anos 80, com o programa militar do então ditador iraquiano Saddam Hussein. Mais especificamente, na construção de mísseis. O líder da missão era o brigadeiro Hugo de Oliveira Piva.
Um dos pesquisadores mais brilhantes que já passaram pelo Instituto de Pesquisas Aeronáuticas (ITA), de São José dos Campos (SP), Piva trabalhou – durante o regime militar brasileiro – em diversos projetos de construção de mísseis, como o modelo ar-ar Piranha. E, também, o VLS – Veículo Lançador de Satélites.
Com o fim da ditadura, minguaram os recursos para projetos militares. Piva e outros 26 técnicos e engenheiros brasileiros deslocaram-se então para o Iraque, com o apoio do governo brasileiro.
Mas, em 1990, Saddam Hussein decidiu atacar o vizinho Kuwait e a história de Piva e seu grupo veio à tona.
Piva sempre admitiu haver continuado, em terras iraquianas, a desenvolver seu míssil Piranha.
O que ele nunca admitiu – e jamais foi definitivamente esclarecido – é se esteve à frente do upgrade de antigos mísseis soviéticos, para torná-los capazes de carregar uma bomba atômica a distâncias de até 1.000Km, atingindo, por exemplo, o coração de Israel ou do Irã.
Reportagens nos jornais norte-americanos The New York Times e Christian Science Monitor foram muito além, classificando o brigadeiro Piva como o responsável pelo envio secreto de yellow cake (urânio refinado) brasileiro para Saddam Hussein, em 1981. Piva sempre negou.

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DE VOLTA AO PROGRAMA NUCLEAR BRASILEIRO

A perspectiva de esgotamento da capacidade de produção de energia via usinas hidrelétricas e termoelétricas levou o governo brasileiro a retomar o programa nuclear, ao lado de outras alternativas, como a geração de energia por biomassa.
No final de 2005, o Governo Federal anunciou sua disposição de reiniciar a construção da usina de Angra 3 – que está paralisada há duas décadas e onde já foram consumidos cerca de US$ 800 milhões. Com isso, o governo pretende ampliar a fatia representada pelas usinas nucelares na matriz energética brasileira, dos atuais 3,7% para 5% até 2022. Nesse período, seriam necessários investimentos de US$ 13 bilhões.
A revisão do Programa Nuclear conta com planos de construção de outras duas grandes usinas e quatro geradoras de pequeno porte. Em maio de 2005, o Ministério da Ciência e Tecnologia inaugurou a primeira unidade de enriquecimento de urânio em escala industrial. Em pleno funcionamento, ela permitirá abastecer 60% do urânio necessário ao funcionamento de Angra 1 e Angra 2.

O PROGRAMA NUCLEAR BRASILEIRO
As primeiras iniciativas do Brasil na área nuclear datam da década de 1950. Mas o processo foi acelerado na década de 70, durante o regime militar, que previa não apenas o uso do átomo para a geração de energia elétrica, como também, a construção da bomba atômica verde amarela.
À época, as ditaduras do Brasil e da Argentina disputavam uma corrida pela hegemonia regional – os argentinos também desenvolviam sua bomba-A.
No plano da geração de energia, depois de muita negociação com os EUA, o Brasil conseguiu que a Casa Branca aceitasse, em 1970, um acordo para que a empresa norte-americana Westinghouse construísse a usina de Angra 1. O projeto nuclear completo previa mais seis usinas (duas em Angra e seis no litoral de São Paulo).
O problema é que os EUA desconfiaram do uso que o Brasil faria da usina nuclear. Isso porque o governo brasileiro é signatário do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, que o proíbe de construir bombas atômicas. Assim, os norte-americanos vetaram os passos seguintes do programa nuclear do Brasil. Em 1974, o então presidente Ernesto Geisel assinou outro acordo, agora com a Alemanha, para concluir a construção das usinas de Angra. A Casa Branca não gostou. mas terminou engolindo. E o Brasil inaugurou Angra 1 em 1982, seguida por Angra 2.

PROGRAMA MILITAR
Em 1979, a ditadura brasileira deu início ao chamado Programa Nuclear Paralelo, isto é, com finalidades militares. O programa tinha três personagens-chave: o almirante Othon Pinheiro da Silva, o coronel e pesquisador Rex Nazaré, e o brigadeiro Hugo de Oliveira Piva.
O almirante Othon estaria à frente da construção do submarino nuclear, a partir da base do IPEN (Instituto de Pesquisas Nucleares/USP) e da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) no centro de Aramar, no interior paulista. A construção do submarino começou logo no início da década de 1980, mas ainda não terminou, principalmente por conta da resistência de outros países em transferir tecnologia ao Brasil. Em 1987, o então presidente José Sarney anunciou que o Brasil dominava a tecnologia de enriquecimento de urânio. O submarino, que já consumiu US$ 900 milhões (e deve custar US$ 1,4 bilhão até o final), deverá estar pronto, na melhor das hipóteses, apenas em 2025.
Já Rex Nazaré foi responsável pela implantação do Poço do Cachimbo  e pelo projeto de construção da bomba atômica brasileira. O fim da ditadura levou à suspensão do projeto.
O papel do brigadeiro Hugo Piva no Programa Nuclear Paralelo é mais obscuro. Isso porque, nos anos 80, em meio a sérias dificuldades financeiras, a pressões dos EUA contra o uso da energia atômica no Brasil e diante do aumento das manifestações pela democracia, o governo militar reduziu drasticamente o fluxo de recursos para o programa nuclear paralelo.
Teve início, então, um acordo secreto com o Iraque de Saddam Hussein, que forneceria os recursos necessários à conclusão de vários projetos brasileiros, em troca da transferência de tecnologia. O Iraque contratou – oficialmente a título privado – 26 cientistas brasileiros, chefiados pelo brigadeiro Piva, que colaborariam com seus projetos militares. Por baixo do pano, o governo brasileiro apoiava a ida de Piva.
Além dos brasileiros, o Iraque contratou outros cientistas estrangeiros, como o britânico Gerard Bull – autor de um projeto de super canhão capaz de lançar bombas atômicas a longa distância, e também o alemão Karl- Heinz Schaab. Este teria desempenhado papel de destaque no envio secreto de urânio brasileiro enriquecido para o Iraque. O envio foi denunciado pela imprensa brasileira no início dos anos 80 e teve o dedo do então Governo de São Paulo, ocupado por Paulo Maluf.

O Poço de Cachimbo
Um dos episódios mais obscuros do Programa Nuclear Paralelo do Brasil refere-se ao Poço do Cachimbo, inaugurado secretamente em 1981. Lá, em plena Serra do Cachimbo, no Pará, as Forças Armadas construíram um grande complexo de covas e poços, alguns com até 320 metros de profundidade e paredes reforçadas por camadas de concreto e aço de um a três metros de espessura.
Batizado de Projeto Solimões, o Poço do Cachimbo teria como objetivo a realização de experiências e, no limite, de explosões da futura bomba atômica brasileira. O complexo foi definitivamente desativado em setembro de 1990, pelo então presidente Fernando Collor de Mello. À época, também já havia terminado a ditadura militar argentina e o novo governo democrático abandonara o projeto de bomba atômica no país.

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CUBA ENCARA O FUTURO SEM FIDEL

Newton Carlos

O “Comandante Supremo” planejou a sua própria sucessão, apostando no irmão Raúl e na unidade do PC para assegurar um “castrismo sem Fidel”. Mas admitiu suas incertezas.
As incertezas do futuro começaram a inquietar Fidel Castro, pelo menos em manifestações públicas, já nos últimos meses. Internamente, nos ambientes mais fechados do regime comunista cubano, tudo indica que essa questão já vinha se impondo diante de evidências da fragilidade física de Fidel. “As revoluções estão condenadas a fracassar?”, perguntou numa reunião em novembro de 2005 com estudantes da universidade de Havana. Era a expressão de preocupações com sua sucessão ou com a própria sobrevivência do regime comunista cubano e o lugar na história de quem o criou e o manteve – e supostamente ainda mantêm – sob rédeas curtas por mais de quatro décadas.
Fidel encarna a revolução e os rumos que ela tomar, mesmo sem ele, darão os termos do desfecho da epopéia do “Líder Máximo”. Não faz muito tempo um general cubano se reuniu com compatriotas em Madri. Fez uma observação que logo percorreu círculos próximos do castrismo e hostis a ele. Fidel concentrou de tal modo o exercício do poder em Cuba que ficaram esclerosados os trâmites de uma sucessão que possa segurar a “estabilidade” do regime. Teria ficado impossível a formação de sucessores com estatura capaz de manter a linha. O próprio Fidel mostrou-se preocupado com isso numa série de entrevistas a Ignácio Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, jornal que funcionou como espécie de confessionário.
Fidel não escamoteou a possibilidade de que as revoluções acabem sendo “autodestrutivas”. Claro que Cuba entra nesse seu imaginário. “Quando os antigos começarem a desaparecer e for preciso recorrer a novas gerações de dirigentes, o que acontecerá?”, perguntou. Se sua idéia for correta, faltarão quadros à altura de quem exerceu o poder como um “deus”. As inquietações deságuam numa pergunta angustiante contida nas declarações recolhidas por Ramonet: é possível fazer com que as revoluções sejam irreversíveis? O que leva a uma outra indagação, que seguramente atormenta Fidel. Será possível passar à história como construtor de um regime inabalável, com a sobrevivência de conteúdo revolucionário “quimicamente” puro? Os adversários se deliciam com exemplos que só levam a descaminhos, alguns trágicos.
A antiga União Soviética desabou com as lutas entre as reformas de Gorbachev e remanescentes da linha dura do partido. Em Cuba, em julho, foi reabilitado um órgão executivo, o secretariado do comitê central, desativado desde 1991. Tem 12 membros, inclusive os irmãos Castro, alguns velhos ideólogos, e oito com menos de 50 anos, as segunda e terceira gerações da revolução. Meios diplomáticos interpretaram como ensaio de direção mais coletiva e mais jovem.. Mas o próprio Fidel deixou claro que não iria bater em retirada dizendo compreender que “meu destino não foi vir ao mundo para descansar no fim da vida”. A “coletivização” do poder, que aparentemente começou a ensaiar-se com a doença de Fidel, é vista como “mistura sutil” entre a velha guarda e uma nova geração de dirigentes do partido e do governo.
No grupo estão dois históricos ortodoxos, um deles fundador do partido Comunista, José Ramon Balaguer, de 75 anos. Convivem, ou têm de conviver com Carlos Lages, de 54 anos, artífice das reformas dos anos 90, freadas por Fidel com medo de perda do controle da economia.
Com a ausência do “Comandante Supremo” como árbitro indiscutível, a convivência será possível? Raúl Castro terá o mesmo poder de arbitragem do irmão?
Na China, após a morte de Mao Tsé-tung e duras lutas sucessórias, subiu ao pedestal o “papa” da complicada mistura entre abertura econômica e continuidade do fechamento político, sob hegemonia do partido único.
Esse “papa”, Deng Xiao-ping, antigo execrado pela “revolução cultural” de Mao Tsé-tung, acabou na galeria da fama por feitos que não têm nada a ver com o maoísmo.
Sob a sua batuta, até Confúcio foi reabilitado, com seus ensinamentos de respeito às tradições e submissão...
Em Cuba, há quem flerte com o “modelo chinês” de “socialismo de mercado”, cuja adoção significaria passar por cima do castrismo. Raúl teria, entre suas tarefas de preservação do regime, a de impedir que isso aconteça e manche a biografia do irmão. A transição, por enquanto com formato provisório, obedeceu a um ritual destinado a fortalecer o sucessor aparente. A referência escolhida foi o aniversário de 75 anos de Raúl, em junho. A imprensa estatal publicou um caudaloso perfil biográfico do irmão de Fidel, acompanhado de fotos de visitas a bases militares.
O próprio Raúl, num gesto pouco freqüente, se referiu à sucessão. Declarou que “só o Partido Comunista, como instituição que mantém unida a vanguarda revolucionária e sempre garantirá a unidade dos cubanos, é o herdeiro da confiança depositada pelo povo cubano em seu líder”. Qualquer outra coisa, sentenciou, “é pura especulação”.
Sobre ele, escreveu o Granma, jornal do PC cubano, no aniversário: “A propaganda da mídia capitalista vem tentando por muitos anos retratar Raúl como extremista”. O inimigo “não gosta dele porque sabe muito bem o que Raúl representa para a revolução, o nosso povo e o futuro da nossa nação”.
O irmão Raúl, promovido a árbitro, junto com um partido comunista “intacto”, preservariam o lugar de Fidel na história. Nada igual ou mesmo parecido com o pós- Mao ou que lembre o conflito irreconciliável entre a linha dura e os reformistas russos. É a expectativa de Fidel, em meio a incertezas inevitáveis. O momento é favorável, segundo analistas. Há projetos de reconstrução industrial, que investidores estrangeiros consideraram muito onerosos, mas nos quais se engajou uma Venezuela farta em petrodólares. Além disso, divisas continuam entrando graças ao turismo e à “exportação” de mais de 30 mil médicos e outros especialistas.
A previsão de crescimento do PIB de Cuba para este ano é de mais ou menos 12%. O regime castrista estaria recuperando, no plano econômico, a margem de manobra perdida com a implosão do bloco soviético. O petróleo russo subsidiado foi substituído pelo petróleo venezuelano subsidiado. Até mesmo a onda de repressão contra dissidentes, que incluiu três fuzilamentos sumários em 2003, anda esquecida. Os entusiastas do regime acreditam que, afinal, o castrismo pode sobreviver ao desaparecimento de seu criador.

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A GRIPE AVIÁRIA CHEGARÁ AO BRASIL?

José Arnaldo Favaretto e Helio Trebbi

Desde 2003, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 236 pessoas foram infectadas e 138 morreram em conseqüência da gripe aviária. Até 9 de agosto de 2006, os casos aconteceram em apenas dez países: Azerbaijão, Camboja, China, Djibuti, Egito, Indonésia, Iraque, Tailândia, Turquia e Vietnã. Em 2006, 16 casos na Turquia – com 4 mortes confirmadas pela OMS – colocaram toda a Europa em alerta.
Sabendo-se que os casos estão concentrados na Ásia, como a doença poderia se espalhar mundialmente? Existem pelo menos duas possibilidades:
1. A variedade H5N1 do vírus influenza do tipo A, que é o agente da gripe aviária, transmite-se de aves selvagens para aves domésticas, e vice-versa.
Seguindo as rotas migratórias, o vírus poderia se alastrar para todos os continentes, embora com menor probabilidade de atingir a América do Sul, uma vez que é pequena a sobreposição entre rotas oriundas da Ásia e as que se destinam para cá.
2. Uma mutação – evento comum nos vírus – poderia conferir à variedade H5N1 a capacidade de passar de uma pessoa para outra, dando dimensões dramáticas à doença, que atingiria um número incalculável de indivíduos. A capacidade de mutação do vírus é tão elevada, que a questão não é saber “se” ele saltará de pessoa para pessoa, mas “quando” isso ocorrerá. A OMS suspeita que em dois casos isso já pode ter acontecido: um na Tailândia, em 2004, e outro na Indonésia, em junho de 2006. Nesse caso, “o bicho pega”, pois não há mais necessidade de nenhuma ave doente: uma única pessoa infectada poderá contagiar centenas, acendendo um perigoso rastilho.
Segundo estimativas do epidemiologista Oscar Mujica, da Organização Pan- Americana da Saúde (Opas), se a gripe aviária infectasse 25% da população da América Latina, mais de 300 mil pessoas morreriam nas primeiras oito semanas; em caso de pandemia grave, o número de mortos poderia chegar a 2,5 milhões! Além da grande perda de vidas humanas, os impactos econômicos na região seriam devastadores. “Mais de 500 milhões de dias de trabalho poderiam ser perdidos se uma pandemia moderada atingisse a região; uma pandemia grave poderia elevar esse número para 700 milhões”, estima o epidemiologista. “Os custos diretos desse tempo perdido poderiam ser calculados entre US$ 15 bilhões e US$ 21 bilhões”.
Cristina Shneider, também da Opas, explica que outros custos econômicos de uma eventual pandemia ainda precisam ser calculados com mais exatidão. A avicultura da América Latina movimenta anualmente cerca de US$ 25 bilhões, que seriam drasticamente reduzidos. No Brasil, por exemplo, mesmo sem nenhuma ave morta pela gripe até hoje, os prejuízos já foram sentidos, pelo receio da população em comer carne de frango. Além disso, a carne de aves corresponde a 40% da ingestão de proteínas da população latino- americana, e um quadro de desnutrição protéica poderia se instalar se a oferta de carne de aves e de ovos fosse afetada.
De acordo com especialistas, a palavra- chave nesse caso é prevenção. As organizações de saúde, como a OMS e a Opas, já estão mobilizadas, orientando a implementação de programas de controle.
Além disso, é fundamental que os governos nacionais organizem suas próprias redes de vigilância epidemiológica.
Entretanto, até agosto de 2006, essas redes estavam funcionando em apenas oito países da região: Argentina, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Honduras, México e Panamá. No Brasil, já foram destinados mais de US$ 400 milhões para a prevenção da doença, gastos no fortalecimento das medidas de vigilância nas fronteiras, em portos e aeroportos, no treinamento de equipes e na montagem de unidades sentinela. Além disso, diversas outras medidas foram tomadas, como a restrição ao transporte e à comercialização de aves vivas.
Vacinas anti gripe aviária ainda não passaram da fase experimental, iniciada em abril de 2005 e, no Brasil, a partir de 2006. A variedade H5N1 tem se mostrado resistente a algumas das drogas anti-virais mais empregadas, mas sensível a outras, como o oseltamivir (Tamiflu®). Teriam os “falcões” da diplomacia norte-americana idéia melhor?

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PANDEMIAS DIFUNDEM-SE NO RITMO DA GLOBALIZAÇÃO

José Arnaldo Favaretto e Helio Trebbi

Responda rápido: onde é fabricado seu iPod? Pois é! Desde que Napoleão colocou a burguesia a seu lado, o mundo só faz encolher. E, falando de um francês, lembramos de outro: o vinho Beaujolais.
Anualmente, na terceira quinta-feira de novembro, apreciadores do saboroso tinto francês no mundo todo abrem milhões de garrafas recém-chegadas do sul da Borgonha, a região produtora. O curioso é que, para degustá-lo comme il fault, o vinho deve sair da França na véspera! Simultaneamente, mais de 150 países recebem a safra do ano, o que é possível graças a uma verdadeira operação de guerra, de que participam milhares de produtores, despachantes, vendedores, compradores, aviões, caminhões etc. No intervalo de 12 a 24 horas, le Beaujolais est arrive a seus mercados consumidores e às taças de seus apreciadores all over the world.
Aí está uma das faces da globalização.
A economia mundializada fragiliza as fronteiras nacionais, tornando-as permeáveis ao dinheiro, matérias-primas e manufaturados.
Pelas fronteiras, também passam turistas, executivos, empresários, comerciantes, pilotos, comissários de bordo, soldados, pessoas em busca de trabalho e refugiados de guerras civis. Há algo, porém, que passa com mais facilidade pelos detectores de metal e pelos cães farejadores dos aeroportos: os micróbios.
O vírus da gripe aviária é o grande vilão atual, mas há inúmeros antecedentes históricos. No século XIV, a peste negra (denominação da epidemia que hoje sabemos ter sido a peste bubônica) matou 70% da população de muitas cidades européias. Duzentos anos depois, o “general varíola” auxiliou o conquistador espanhol Hernán Cortez a dizimar o império asteca. No mesmo século XVI, os navegadores portugueses “globalizaram” a sífilis. No início do século XX, a “espanhola” – como ficou conhecida uma devastadora pandemia de gripe – ceifou 20 milhões de vidas em todo o mundo, mais que o total dos mortos nas batalhas da Primeira Guerra Mundial (1914-18).
Exemplos de pandemias mais recentes são a Aids (síndrome da imunodeficiência adquirida, que dispensa apresentações) e, já no século XXI, a Sars (severe acute respiratory syndrome ou síndrome respiratória aguda grave), uma forma de pneumonia de alta letalidade, que trouxe perdas econômicas e gastos estimados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em US$ 30 bilhões.
De tempos em tempos, surtos de febre aftosa transtornam a Europa. Os países afetados, bem como a própria União Européia, são obrigados a colocar a mão no bolso e acrescentar alguns milhões de euros aos bilhões já gastos anualmente em subsídios aos criadores de gado e aos agricultores do Velho Continente. Mas não é só no outro lado do Atlântico que o vírus da aftosa acarreta prejuízos. Recentes episódios em Mato Grosso do Sul e no Paraná fecharam o mercado mundial à carne brasileira, comprometendo nossa pauta de exportações.
Não foi a primeira vez; por certo, não será a última.
“Essas carnificinas de vacas e de carneiros na Inglaterra e na França, essas fogueiras de bruxas, com suas nauseabundas colunas de fumaça escurecendo os céus de Kent ou da Normandia, esses matadouros entulhados de carcaças ensangüentadas: esse é o pesadelo europeu.”
Foi assim que o jornalista Gilles Lapouge descreveu a reação dos governos europeus à doença da vaca louca ou encefalopatia espongiforme dos bovinos (ou BSE, do inglês bovine spongiform encephalophaty), que fez estripolias principalmente na Grã- Bretanha.
Em 2001, a suspeita de infecção do rebanho nacional com o príon causador da BSE levou alguns países a boicotar a carne bovina brasileira. Entre eles, estava o Canadá, que disputava com o Brasil o comércio de jatos de passageiros, numa contenda entre a canadense Bombardier e a brasileira Embraer.
Enquanto os fabricantes de aviões lutavam pelo controle do mercado, “dona Mimosa” continuava pastando, bovinamente e, é claro, sem nenhum sinal de BSE.
Esses episódios servem de alerta: quanto mais competitivo for o Brasil no acirrado comércio mundial, mais obstáculos serão colocados à nossa frente, na forma de subsídios aos produtores, medidas protecionistas de natureza tarifária ou, ainda, de barreiras fitossanitárias. Assim acontece com as carnes bovina e suína, o açúcar, o suco de laranja, as frutas...
A gripe aviária – ou gripe do frango – transformou essas aves na bola da vez. Casos de gripe raramente ocorrem em aves selvagens, que transportam em seus intestinos os vírus, altamente contagiosos e que podem causar doença e morte em aves domésticas, como frangos, patos e perus. As aves infectadas eliminam os vírus com as secreções e as fezes, podendo infectar grande número de outras aves, por contato direto com as secreções e as fezes ou, indiretamente, pelo contato com instalações, água e alimentos contaminados.
A epidemia que se alastra há alguns anos pelo mundo tem como agente causador a variedade H5N1 do vírus influenza do tipo A, altamente agressiva e contagiosa. Essa variedade raramente atacava seres humanos, mas, desde 1997, as coisas estão mudando.
Em todos os casos notificados, os doentes tinham história de contato próximo com aves domésticas ou com suas instalações (gaiolas e galinheiros), demonstrando que o vírus rompera a barreira entre as espécies. Ao mesmo tempo, não há caso confirmado de transmissão entre humanos, um dos grandes riscos atuais.
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CINCO ANOS DEPOIS, UMA POLÍTICA EM FRANGALHOS

O 11 de setembro de 2001 deflagrou a “guerra ao terror”, de George Bush. A estratégia, que conduziria a uma “reforma do Oriente Médio”, produziu destruições e espalhou fundamentalismos.

Uma saída para o atoleiro iraquiano: esse é o tema que concentra as atenções da elite formuladora da política externa americana.
Fora de um círculo de dogmáticos que repete há anos os mantras da Doutrina Bush, ninguém mais acredita nas estratégias radicais elaboradas nos dias seguintes aos atentados de 11 de setembro de 2001.
A revista Foreign Affairs abriu o debate com um artigo de Stephen Biddle, um especialista do Conselho de Relações Exteriores, respeitado núcleo de análises de política externa. Biddle tenta separar “Iraque” de “Vietnã”, argumentando que a violência crescente no primeiro não é uma insurgência nacionalista, como a que expulsou as forças americanas do segundo, nos anos 60 e 70, mas uma “guerra civil entre comunidades”. A sua receita é promover uma mediação entre xiitas, sunitas e curdos, misturando força e ameaças para impor um acordo. Se necessário, os Estados Unidos deveriam até mesmo usar a ameaça da retirada para pressionar xiitas e curdos a uma composição aceitável para os sunitas.
Larry Diamond, da Hoover Institution, outro núcleo respeitado, discorda de Biddle. Ele não crê em duendes e, portanto, reconhece que, junto com a “guerra civil entre comunidades”, há uma insurgência nacionalista no Iraque. Isso significa que a “ameaça” de retirada americana seria um ultimato vazio, pois grande parte das forças políticas iraquianas poderiam desafiar o blefe.
James Dobbins, da conservadora Rand Corporation, não vê alternativas a uma rápida retirada. No tom característico dos velórios, ele sugere que os Estados Unidos renunciem ao discurso da “democratização do Oriente Médio” e peçam ajuda aos países árabes e à ONU para obter um mínimo de estabilidade no Iraque, a fim de organizar uma saída honrosa.
Honra e retirada: não há como afastar o espectro histórico do Vietnã. Leslie Gelb, presidente do Conselho de Relações Exteriores, e Chaim Kaufmann, da Lehigh University, tocam essa melodia, em tons não muito diferentes. Gelb propõe dividir o Iraque numa frouxa confederação, como prelúdio à partida. Kaufmann imagina que esse será o resultado inevitável dos crescentes conflitos sectários no país e que só resta às forças americanas fingir que são “capacetes azuis” da ONU e proteger os civis durante os ciclos de “limpeza étnica” que já se esboçam.
Há meia década, as perspectivas eram outras. Reagindo ao 11 de setembro, Bush proclamou a “guerra ao terror” e deflagrou a operação no Afeganistão. O mundo estava com os Estados Unidos quando o regime fundamentalista do Talebã foi derrubado e os chefes da Al-Qaeda passaram a ser caçados nos desfiladeiros e cavernas das montanhas afegãs. Mas a unidade trincou logo depois, com o discurso do “Eixo do Mal”, no início de 2002, e com a arrogante proclamação da “guerra preventiva”, meses mais tarde.
Poucos, fora do círculo dos fiéis neoconservadores, se deixaram comover pela rede de mentiras que preparou a invasão do Iraque. Atrás do discurso sobre as armas de destruição em massa, emergia a estratégia de reformar o Oriente Médio segundo a vontade de Washington. O Iraque seria o passo inaugural na marcha batida de derrubada dos regimes iraniano e sírio, com a imposição de protetorados diretos ou informais americanos. A “segurança energética” e a “guerra ao terror” alinhavam-se num único raciocínio estratégico de inspiração imperial.
Os desastres acumularam-se, depois da ofensiva triunfal a Bagdá. Sem o apoio da França e da Alemanha, e sob a desconfiança ou a hostilidade aberta dos países árabes, os Estados Unidos afundaram-se na lama da ocupação do Iraque. O terror atacou em Madri e em Londres, evidenciando a difusão da mensagem sangrenta de Osama Bin Laden. Ao mesmo tempo, o mundo conheceu a rede internacional de centros de tortura operada pelos serviços secretos americanos nas prisões do Afeganistão, do Iraque e de Guantánamo (Cuba).
Sinais de uma “reforma do Oriente Médio” foram anunciados por Washington, com grande estardalhaço, quando o assassinato do líder libanês Rafik Hariri, em fevereiro de 2005, deflagrou a chamada “revolução do cedro”. Instalou-se então no Líbano um governo de unidade nacional, que restaurou a soberania do país e conseguiu a retirada das tropas da Síria.
Mas o Líbano soberano não se tornaria um país alinhado aos Estados Unidos, como ficou evidente pela participação de ministros do Hezbollah no novo governo e pelo recente ataque de Israel ao país.
A estratégia geral de Bush não contemplou uma paz negociada entre Israel e os palestinos. Na visão de Washington, o conflito seria solucionado pelo enfraquecimento do lado palestino e, no fim, pela imposição de uma paz com anexações, nos termos de Israel. Contudo, a ferida aberta nos territórios ocupados só produziu violência e radicalização. A vitória dos fundamentalistas do Hamas nas eleições palestinas de janeiro fechou um ciclo e evidenciou que não haverá paz sem negociações.
Os planos de “reforma do Oriente Médio” incluíam a derrubada do regime anti-americano no Irã. Entretanto, a crise permanente no Iraque reforçou a posição regional iraniana. O regime de Teerã ampliou sua influência sobre os xiitas iraquianos e engajou-se na obtenção das tecnologias de armas nucleares.
Cinco anos atrás, Bush promoveu um consenso nacional em torno da sua “guerra ao terror”. O consenso partiu-se lentamente mas não explodiu nem mesmo depois dos insucessos iniciais da ocupação do Iraque. Hoje, ele evaporou. No fim de agosto, o senador Joe Lieberman, um dos raros líderes do Partido Democrata que jamais vacilou no apoio à aventura iraquiana, pediu a renúncia do Secretário da Defesa Donald Rumsfeld e acenou com a idéia de uma conferência internacional sobre o Iraque. Se Lieberman saltou do navio é porque o naufrágio não pode mais ser evitado.

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DOUTRINA BUSH INSPIROU ISRAEL A ATACAR O LÍBANO

Ofensiva israelense destinava-se a eliminar o Hezbollah. O seu fracasso aprofunda o perigoso impasse na Palestina e prenuncia novas guerras no Oriente Médio.

No início de 2002, ainda sob o impacto dos atentados de 11 de setembro de 2001 e já em plena campanha militar no Afeganistão, o presidente George Bush, em discurso à nação, definiu as linhas mestras da política externa americana. Naquele discurso, a Doutrina Bush adquiriu contornos definitivos.
Bush delineou a noção de “guerra preventiva”, mandando um recado ao mundo: seu país afirmava o direito de atacar qualquer outro que representasse um perigo à segurança dos Estados Unidos. Ali anunciava-se a invasão do Iraque, deflagrada em 2003.
O discurso da “guerra ao terror” logo tornou-se um álibi político universal. Rússia, China e Israel, cada um a seu modo, “pegaram carona” na Doutrina Bush para justificar a repressão a grupos rebeldes e legitimar, em nome do combate ao terrorismo, a violação sistemática de princípios democráticos e dos direitos humanos. A ofensiva israelense no Líbano participa deste contexto internacional. Suas raízes encontram-se no ano 2000, quando eclodiu uma nova revolta palestina (a “segunda intifada”) e, simultaneamente, Israel decidiu retirar suas tropas instaladas no sul do Líbano.
A “segunda intifada”, marcada por atentados suicidas perpetrados por palestinos dos grupos Hamas e Jihad Islâmica, só arrefeceu em 2004. Cada ação praticada por esses grupos era seguida de violentas represálias israelenses, que também atingiam civis.
Foi nesse período que o ex- primeiro ministro de Israel, Ariel Sharon, estruturou a estratégia da “paz imposta”. O Plano Sharon previa a definição unilateral das fronteiras, a anexação definitiva de parcelas da Cisjordânia, a integração total de Jerusalém ao território israelense e a separação física, por meio de um extenso muro, entre Israel e o território fragmentário sob administração da Autoridade Nacional Palestina (ANP).
O Plano Sharon baseava-se na idéia da submissão da ANP, cuja função seria a de garantir estabilidade política nos territórios ocupados de Gaza e da Cisjordânia. As eleições palestinas de janeiro puseram por terra a estratégia. Os palestinos votaram contra os sucessores de Yasser Arafat, falecido em 2004, e deram a vitória ao Hamas, rejeitando assim o plano de Sharon.
Criado em 1982, na esteira da Revolução Islâmica iraniana, o Hezbollah tornou-se rapidamente uma força política e militar implantada nas áreas de populações xiitas libanesas do Vale do Bekaa, dos subúrbios de Beirute e do sul do país. Desde o início, o grupo prega a destruição do Estado de Israel.
Os Estados Unidos e Israel qualificam o Hezbollah como “organização terrorista”.
Mas, no Líbano, ele é considerado um partido popular xiita e, ainda, uma força militar de defesa nacional. Durante anos, as milícias do Hezbollah fustigaram as tropas de Israel no sul do Líbano. A retirada israelense de 2000 ampliou o apoio popular à organização, que reuniu 500 mil manifestantes e recebeu 15% dos votos nas eleições libanesas de 2005. Depois disso, passou a participar, como força minoritária, do governo libanês de união nacional.
A nova guerra libanesa começou, em julho, com um acidente prosaico, para padrões da região: a morte de oito soldados de Israel e a captura de outros dois pelo Hezbollah. Israel reagiu bombardeando o Líbano, atingindo não só áreas de ação do Hezbollah mas também bairros xiitas de Beirute, povoados e infra-estruturas de transportes e energia.
As forças israelenses retornaram ao sul do Líbano, onde enfrentaram as milícias irregulares da organização xiita. Durante cerca de um mês, até a entrada em vigor de um cessar-fogo patrocinado pela ONU, mais de mil civis libaneses foram mortos. Praticamente um quarto da população do país foi transformada em refugiados internos.
No entanto, pela primeira vez desde sua fundação, em 1948, Israel transformou-se em alvo sistemático de foguetes do Hezbollah, abastecidos pela Síria e Irã que, ocasionaram a morte de mais de uma centena de israelenses.
Estabelecido o cessar-fogo, os adversários fizeram suas contas. O governo israelense proclamou vitória, sob o argumento de que teria enfraquecido o Hezbollah, reduzindo, em pelo menos 80% sua capacidade militar e proporcionado uma nova correlação de forças no sul libanês, que será patrulhado pelo exército do país e por forças da ONU. O Hezbollah também cantou vitória e, para provar que continua vivo e forte, lançou nada menos que 246 foguetes contra Israel no último dia do conflito.
No mundo árabe-muçulmano, difundiu-se a percepção de que Israel não é invencível, pelo menos em confrontos não convencionais, quando suas tropas são obrigadas a combater milícias irregulares. Aparentemente, os militantes do Hezbollah tiveram êxito onde, no passado, os exércitos dos países árabes e os homens-bomba palestinos falharam.
Não é realista negar que Israel sofreu clara derrota política, uma conclusão extraída inclusive por órgãos conservadores como a revista The Economist. A meta proclamada pelo governo israelense, na hora do início dos bombardeios, era eliminar o Hezbollah como força militar e redesenhar a política libanesa. No lugar disso, a organização xiita firmou-se como pilar político e militar da defesa do Líbano e não será desarmada sem um acordo regional amplo entre os árabes e Israel.
O Plano Sharon recebeu um golpe mortal. Ninguém mais acredita que uma paz imposta, com fronteiras traçadas de modo unilateral, possa estabilizar a região ou garantir a segurança de Israel. De quebra, o muro israelense foi desmoralizado pois, se ele pode reduzir o número de atentados suicidas, não tem nenhum efeito contra foguetes como os usados pelo Hezbollah ou mesmo como os rudimentares foguetes lançados em menor escala pelo Hamas.
Mais uma vez, só há uma lição razoável: nada substitui um acordo de paz. Contudo, em Israel, fala-se em novas guerras, agora “decisivas”. E, entre palestinos e xiitas libaneses, fala-se em extirpar Israel do mapa do Oriente Médio. Política e razão nem sempre andam juntas.
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ATAQUE AO LÍBANO REVELA OS LIMITES DO PODERIO MILITAR

Ze'ev Schiff e Milton Hatoum
Apresentamos, em seguida, duas visões sobre a guerra entre Israel e o grupo Hezbollah.
Ze’ev Schiff é judeu israelense e analista militar do jornal Haaretz, um dos mais importantes de seu país; Milton Hatoum é brasileiro, filho de libaneses, e um dos mais premiados escritores contemporâneos.

Um país, às vezes, tem de levar uma bofetada para despertar. Isso aconteceu com Israel, em 1973, na Guerra do Yom Kippur, quando morreram 2.600 pessoas, e também na Intifada de Al Aqsa, levante palestino iniciado em 2000, que causou mais de mil mortes. Agora, Israel levou outra bofetada durante a guerra contra o Hezbollah.
Também nos países árabes muita gente acredita que a guerra criou uma nova realidade. Na Síria, especula-se se chegou a hora de retomar pela força as Colinas de Golã (que Israel ocupa desde 1967). Para muitos no mundo árabe, os combates entre Israel e o Hezbollah fazem parte de um cenário mais amplo, que inclui a incapacidade dos Estados Unidos em eliminar a insurgência no Iraque. Os árabes estão vendo que o poderio militar não garante o sucesso. E há os que compreendem que o Irã – maior apoiador do Hezbollah – está disposto a intervir mais do que nunca nos assuntos árabes.
Felizmente para Israel, a guerra explodiu antes que o Irã adquirisse capacidade de ameaçar com armas nucleares. Teerã sabe que parte da infra-estrutura que criou para o Hezbollah foi destruída pela guerra, então precisa que as fronteiras com o Líbano permaneçam abertas. Isso permitiria que o Hezbollah fosse armado outra vez. O fato é que não haverá sentido na manutenção de uma força internacional no sul do Líbano se não houver garantia de que o Irã e a Síria não entregarão mais armas e foguetes ao Hezbollah.
Nada no atual desempenho do Hezbollah no sul do Líbano lembra a atuação do grupo em 1982, quando Israel invadiu o país pela primeira vez. O Hezbollah construiu um sistema de túneis que lembra o que os norte-vietnamitas fizeram, na Guerra do Vietnã (1960-75). Seus combatentes, que se escondem nos túneis, vêm à tona de tempos em tempos, para atacar as tropas israelenses e disparar foguetes contra Israel.
Só poderiam ser removidos com bombas incendiárias ou coisa semelhante. A rede de túneis foi planejada por assessores militares iranianos.
Nesta guerra, a tecnologia da Força Aérea e do Exército de Israel permitiu ataques mais precisos. Mas, a mídia internacional tem satélites capazes de fotografar e transmitir relatórios sobre quase qualquer movimento das forças israelenses.
Com essa ajuda, o Hezbollah vem ampliando muito seu trabalho de inteligência.
Pouco depois da retirada do Líbano, em maio de 2000, Israel descobriu que o Irã estava entregando ao Hezbollah grandes quantidades de foguetes e outros armamentos, além de treinar os guerrilheiros.
Logo se soube que a Síria também fornecia foguetes. Essas informações foram entregues aos ex-primeiros-ministros Ehud Barak e Ariel Sharon mas eles decidiram não lançar um ataque preventivo.
Barak, que liderou a retirada do Líbano, não queria mandar as tropas para lá outra vez. E Israel estava em meio a um novo levante palestino. Israel não empregou nenhuma medida defensiva.
Essa política foi adotada, acima de tudo, porque se temia que a comunidade internacional visse como injusto um ataque preventivo.
A conclusão é que uma pequena democracia como Israel não pode se permitir um ataque preventivo contra uma organização terrorista, não importa o quão perigosa ela seja. Essa prerrogativa está reservada às grandes potências e, geralmente, só depois de elas serem atacadas.
Depois do fracasso dos Estados Unidos contra os mísseis Scud, lançados do Iraque em 1991, alguns Estados árabes e o Irã aceleraram o desenvolvimento de mísseis terra-terra. Esse processo deverá ganhar ainda mais força, em função dos resultados dos ataques do Hezbollah contra Israel. E os palestinos, sem dúvida, também acentuarão os lançamentos de mísseis
Qassam e o contrabando de foguetes Katyusha para Gaza e a Cisjordânia. Israel precisa impedir pela força a continuidade desse festival de foguetes contra sua população. Com relação aos palestinos, são necessárias duas medidas: iniciar negociações políticas de fato e deixar claro que Israel reagirá duramente caso seus cidadãos sejam atingidos por foguetes.
É mais complicado resolver o problema dos foguetes e mísseis. Depois da guerra do Yom Kippur, Israel analisou o fracasso diante dos mísseis antiaéreos que abatiam seus aviões e foi capaz de solucionar o problema. O mesmo deve ser feito agora, com relação aos foguetes e mísseis terra-terra. Será um esforço grande e caro.
Ao mesmo tempo, Israel deve deixar claro que, se for atacado, fará seus inimigos pagarem um preço muito alto.
Israel não pode continuar ignorando, como fez até agora, que o poder militar tem limites. Especialmente quando exercido por um país pequeno.
Até julho de 1992, eu não conhecia Beirute,a cidade onde meu pai nasceu. Ele morava no Brasil desde a década de 1930 ese naturalizara brasileiro. Já era idoso, beirando os oitenta anos. Eu acabara de ganhar uma bolsa de literatura para passar uma temporada numa cidade francesa.
Então, meu pai quis saber se eu podia acompanhá-lo até o Líbano, que, na memória do meu pai, era acima de tudo Beirute, o lugar onde tantos Orientes e Ocidentes se encontram. A própria paisagem de Beirute é um privilégio da natureza, pois se debruça sobre as margens do Mediterrâneo e é envolta por montanhas em que a neve e cedros milenares são permanentes.
Há mais de dois mil anos evocado por viajantes, poetas e escritores, o Líbano era comparado a uma Suíça do Oriente: uma denominação bem ao gosto de orientalistas e visitantes deslumbrados com o único país da região que não conhece o deserto. Não por acaso, o nome do país aparece na mais bela e poética passagem do Antigo Testamento: o Cântico dos Cânticos.
Nessa viagem ao Líbano, fiquei impressionado com várias cidades que só conhecia por meio de imagens e descrições. Por exemplo, Baalbek (no vale do Bekaa, próxima da Síria) é um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo. Lá estão os templos romanos de Baco e Júpiter. Mas os vestígios da história vêm da antiqüíssima Fenícia, civilização que floresceu há mais de três mil anos e dominava grande parte do comércio do Mediterrâneo e do Norte da África. Há ruínas fenícias em Tiro, no sul, mas também no norte, sobretudo em Biblos, com suas tumbas e templos, além de um teatro romano e um imponente castelo cruzado do século 12. Em Trípoli, litoral norte, centenas de construções – mesquitas, escolas, mercados – e um centro antigo datam da época das Cruzadas e da Idade Média.
Conheci esse Líbano, histórico e turístico, mas conheci também uma parte do país devastado pela guerra civil (1975-1990) e pela ocupação israelense (1982-2000). Segundo o veterano pacifista israelense Uri Avnery, o recente ataque ao Líbano está relacionado com essa longa ocupação. Desde os primeiros dias dessa guerra, Avnery insistiu em afirmar que Israel estava cometendo um erro gravíssimo, pois não ia acabar com o Hezbollah. A captura de dois soldados não justifica a destruição de um país. Além disso, escaramuças na fronteira existem há seis anos, pois Israel ainda ocupa as fazendas libanesas da região de Shebaa.
Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter afirmou: “Não acho que Israel tenha qualquer justificativa legal ou moral para esse bombardeio maciço do Líbano. O que aconteceu foi que Israel está detendo quase 10 mil prisioneiros. Quando os militantes no Líbano ou em Gaza capturam um ou dois soldados, Israel vê isso como justificativa para um ataque à população civil do Líbano e Gaza. Não acho que se justifique, não.”
O bombardeio destruiu grande parte da infra-estrutura do país. Além disso, deixou um milhão de libaneses deslocados ou desabrigados. Mais de mil pessoas morreram, civis em sua imensa maioria, inclusive centenas de crianças. Do lado israelense, quase 200 pessoas morreram, a maioria soldados. Embora a destruição e o número de vítimas tenham sido muito maiores no Líbano, esse conflito foi também desastroso para os israelenses.
A captura de um soldado israelense também gerou os ataques à Gaza, na Palestina, onde já morreram mais de 160 palestinos, incluindo dezenas de jovens e crianças.
Depois dos ataques ao Líbano e a Gaza, que outra guerra será feita para combater o “terrorismo”, essa palavra que estigmatiza até as crianças palestinas que resistem à ocupação militar atirando pedras em tanques?
Ainda segundo Uri Avnery, “a terrível arrogância (das forças armadas) tornou-se parte do nosso caráter nacional”. E isso pode ser uma verdadeira catástrofe. Para Avnery, “o único caminho que leva à resolução do problema é a negociação, e a paz com palestinos, libaneses e sírios. E com o Hamas e o Hezbollah”. Avnery sabe que dificilmente haverá paz enquanto Israel não devolver as colinas de Golã para a Síria, as fazendas de Shebaa para o Líbano e a Cisjordânia para os palestinos.
Oito mil colonos judeus se retiraram de Gaza. Mas Israel continua a ocupar a Cisjordânia. Além disso, o governo israelense construiu um “muro de segurança” cujo traçado desrespeita a linha verde (demarcação entre Israel e os territórios palestinos), anterior à guerra de 1967. Foi depois dessa guerra que Israel ocupou Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia, e construiu assentamentos para colonos judeus em terras palestinas.
O muro já foi condenado por um tribunal internacional e pela ONU por duas razões:
 a) Além de isolar vários povoados palestinos de seus vizinhos, divide plantações e impede a circulação de pessoas e mercadorias;
b) o traçado do muro adentra em mais de 8% das terras palestinas da Cisjordânia. Assim, os grandes assentamentos ilegais construídos depois da guerra de 1967 seriam anexados por Israel.
No nosso país, há cerca de quinze milhões de brasileiros descendentes de libaneses e sírios, e 150 mil judeus. Os membros dessas comunidades convivem sem atritos e muitos compartilham relações de amizade.
Penso que todos almejam um acordo de paz no Oriente Médio. Mas esse acordo deve ser justo e equânime, pois os palestinos não vão aceitar um Estado retalhado e constituído por dois ou três bolsões de terra, sem continuidade territorial e sem acesso a recursos hídricos. Além disso, cinco milhões de palestinos vivem no exílio, muitos em acampamentos precários. São famílias que foram expulsas ou tiveram de fugir da Palestina em 1948 e nas guerras de 1967 e 1973. Ignorar ou esquecer milhões de exilados é uma ofensa moral a todo um povo.
O Hamas e o Hezbollah são considerados grupos terroristas pelos governos de Israel e dos Estados Unidos, e por uma parte da imprensa. Mas para imensa maioria dos palestinos e libaneses são partidos políticos, com representação nos parlamentos e forte atuação assistencialista nas áreas de educação e saúde. Ambos foram criados para resistir à ocupação militar que, nos territórios palestinos, configura-se como a mais longa da história moderna. O Hezbollah foi criado em 1982, depois da invasão do Líbano pelo exército de Israel.
Sou contra todo tipo de violência, inclusive a verbal. Discordo das práticas violentas desses dois partidos, e também de seu caráter religioso. Mas, rotulá-los simplesmente de “terroristas” pode encobertar a violência e a destruição muito maiores exercidas por Estados ditos democráticos.
Por exemplo, nessa última Intifada, morreram 3.610 palestinos e 696 israelenses (de setembro de 2000 a julho de 2006).
Esses dados são da organização pacifista israelense B’Tselen (www.btselem.org/ english/statistics/Casualties.asp).

“NADA PODE JUSTIFICAR A OCUPAÇÃO E O BOMBARDEIO”
Na abertura da Bienal do Cinema Árabe, realizada em Paris, em 22 de julho de 2006, um grupo de cineastas israelenses enviou uma comovente carta aos seus colegas palestinos e libaneses, da qual publicamos alguns trechos:
“Por intermédio de vocês, queremos enviar uma mensagem de amizade e solidariedade aos nossos colegas libaneses e palestinos que estão atualmente acossados e sendo bombardeados pelo exército de nosso país. Somos categoricamente contra a brutalidade e a crueldade da política israelense, intensificadas ao máximo nas últimas semanas. Nada pode justificar a continuidade da ocupação militar, do cerco e da repressão na Palestina. Nada pode justificar o bombardeio de populações civis e a destruição da infra-estrutura no Líbano e na Faixa de Gaza.
Permitam-nos dizer a vocês que os seus filmes, aos quais fazemos tudo para assistir e circular entre nós, são muito importantes para os nossos olhos. Esses filmes nos ajudam a conhecer e a compreender vocês. Graças a esses filmes, os homens, as mulheres e as crianças - que sofrem em Gaza, em Beirute e em todos os lugares em que nosso exército exerce sua violência -, têm, para nós, nomes e rostos.
Mantemos o compromisso de expressar – por meio de filmes, de ações pessoais e de voz elevada –, nossa oposição categórica à ocupação militar israelense. E de expressar também nosso desejo de liberdade, justiça e igualdade para os  povos da região.”

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