(“ÁTOMOS PELA PAZ”, DISCURSO DO PRESIDENTE DWIGHT D. EISENHOWER À ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 8 DE DEZEMBRO DE 1953)
Um dia o petróleo se esgotará. Usar esse produto nobre para operar fábricas e iluminar residências é uma perda. (...) Prevemos produzir, no menor prazo possível, 23 mil megawatts de eletricidade utilizando centrais nucleares”. O autor dessa frase, datada de outubro de 1974, foi o então imperador iraniano Reza Pahlevi, ao justificar um decreto que lançava o programa nuclear de seu país. O detalhe: os Estados Unidos, na ocasião, apoiaram a iniciativa. No contexto da Guerra Fria, o xá era um precioso aliado, situado numa região estratégica da Ásia. Trinta anos depois, o programa nuclear iraniano é apontado pela Casa Branca como a mais elevada expressão do terrorismo internacional.
Explica-se: após a revolução de 1979, que depôs o xá, o Irã passou a integrar o campo dos inimigos de Washington.A Casa Branca ataca violentamente o programa de enriquecimento do urânio do Irã. Por iniciativa do presidente George Bush, a “questão iraniana” foi levada ao Conselho de Segurança (CS) da ONU, que, no limite, pode recorrer a uma intervenção militar internacional para impedir o prosseguimento de seu programa nuclear. Só não houve uma escalada militar maior na região, até o momento, porque Rússia e China, também integrantes do CS, não se dispuseram a apoiar as iniciativas dos Estados Unidos. Mesmo que a hipótese de uma intervenção militar direta contra o Irã seja pouco provável na atual conjuntura mundial, principalmente após o fiasco israelense no Líbano, a pressão sobre o regime de Teerã acentua as tensões internacionais.
Ao mesmo tempo em que ataca o Irã, a Casa Branca apóia abertamente a entrada da Índia no clube dos países nucleares.
Em março de 2003, durante uma visita a Nova Délhi (capital da Índia), o Bush e o primeiro-ministro Manmohan Singh anunciaram a concretização de um “pacto nuclear” que permite ao país asiático produzir e ampliar o seu arsenal de armas atômicas, além de energia para necessidades civis. A intenção de concluir o acordo fora anunciada em julho de 2005, durante uma visita de Singh aos Estados Unidos, rompendo uma moratória de três décadas, durante as quais os Estados Unidos não venderam combustível nuclear e componentes de reator aos indianos.
Em Washington, tanto os democratas quanto alguns republicanos partidários de Bush criticaram o acordo com a Índia, que ainda terá que ser submetido ao Congresso dos Estados Unidos. Inicialmente, previa-se que ele seria votado em setembro, logo após o término do recesso parlamentar americano.
Os críticos do acordo alegam que o “tratamento especial” concedido à Índia daria mais argumentos ao Irã, que aponta a existência do arsenal nuclear israelense (pelo menos cem ogivas nucleares, segundo cálculos conservadores) como prova da parcialidade da política externa da Casa Branca, Além disso, criaria uma nova área de atrito com o aliado Paquistão, que mantém com a Índia uma tensa relação de disputa sobre a posse do território da Caxemira. Mas, sobretudo, provocaria a China. O programa nuclear indiano foi iniciado como uma resposta à derrota sofrida pelo país na guerra travada com a China, em 1962. Uma das possíveis conseqüências da aprovação do acordo com Nova Délhi seria o estímulo à corrida armamentista na região, e a desmoralização completa do TNP. A China poderia se sentir autorizada a fornecer assistência ao programa nuclear do Paquistão e a ampliar o seu apoio à Coréia do Norte, cuja política nuclear desafia abertamente a Casa Branca.
Como explicar, então, a atitude de Bush, apesar de todos os inconvenientes? Trata-se, precisamente, da percepção neoconservadora que elege a China como a grande rival dos Estados Unidos no século 21.
Durante os anos da Guerra Fria (entre Estados Unidos e União Soviética), a aproximação entre Washington e Pequim, arquitetada por Henry Kissinger, assessor de Segurança Nacional de Richard Nixon, correspondeu a uma tentativa de isolar Moscou e dividir o movimento comunista internacional. Com o fim da Guerra Fria e da suposta ameaça soviética, essa política perdeu o sentido. Houve um óbvio rearranjo no mapa mundial do poder.
Para a equipe neoconservadora conduzida à Casa Branca com a vitória eleitoral de Bush, a China passa a ser a ameaça potencialmente mais perigosa à hegemonia mundial dos Estados Unidos.
O cálculo é simples: se a economia chinesa continuar crescente no ritmo atual (entre 7% e 9% ao ano), em duas décadas o seu PIB será equiparado ao dos Estados Unidos, o que lhe permitirá uma capacitação militar equivalente. Como potência asiática, a China poderá pretender disputar o controle sobre a Eurásia, região chave no século 21, por abrigar 75% da população mundial, produzir 60% do PIB planetário, conter a maior parte dos recursos naturais do planeta, incluindo 75% de suas reservas conhecidas de energia e concentrar o poder nuclear (os Estados Unidos são a única potência nuclear que não faz parte da Eurásia).
O petróleo, obviamente, ocupa um lugar central na disputa, ainda mais por ser a China extremamente dependente de sua importação para sustentar o crescimento da economia. Além das já conhecidas reservas situadas no Oriente Médio, os cinco países da bacia do Cáspio – Azerbaijão, Cazaquistão, Irã, Rússia e Turcomenistão – possuem reservas estimadas de até 200 bilhões de barris de petróleo e um volume comparável de gás. A estratégia americana para a Eurásia desenha um “anel” em torno da Rússia, ao redor da bacia do Cáspio (isso explica a invasão do Afeganistão, em 2001) e agora cria um “cordão sanitário” em torno da China. Não por acaso, os Estados Unidos propõem que junto com o Japão, tradicional aliado, a Índia passe a integrar o CS, em caráter permanente.
É claro que o clima de pânico neo-conservador anti-chinês é muito exagerado, como era, durante a Guerra Fria, o terror artificialmente criado contra a “invasão vermelha”. Primeiro, porque grande parte do sucesso comercial chinês deve-se à atuação de corporações americanas instaladas no país. Segundo, porque longe de ser um “monstro”, a China ajuda a financiar a economia deficitária americana (já que os chineses compram dezenas de bilhões de dólares de títulos do Tesouro americano). Finalmente, a China funcionou, até agora, como potência estabilizadora na Ásia, em especial no que se refere a conter as tendências mais radicais da Coréia do Norte.
Isso tudo pode mudar com as aventuras de Bush. Pior para o mundo, bom para os que lucram com o comércio de armas.
Boletim Mundo n° 6 Ano 14
Nenhum comentário:
Postar um comentário