quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

CINEMA EXORCIZA DITADURAS

Sérgio Rizzo

O general João Baptista de Oliveira Figueiredo ainda ocupava a Presidência da República quando Pra Frente Brasil, de Roberto Farias, disputou o Festival de Gramado de 1982, saindo de lá com os prêmios de melhor filme e montagem. Começava a extenuante batalha para fazê-lo chegar às salas de cinema do país. Não era uma tarefa simples: a censura do regime militar não se mostrava disposta a liberar um filme de ficção que tratava abertamente da tortura a presos políticos pelos órgãos da repressão em 1970, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici e a euforia pela vitoriosa campanha da seleção brasileira de futebol na Copa do México.
Ex-diretor geral da Embrafilme (empresa de economia mista controlada pelo governo federal) de 1974 a 1978, Farias fez valer seu prestígio político e, graças a uma campanha de solidariedade que chegou à imprensa e a cortes pontuais, conseguiu liberar o filme para exibição comercial. Cerca de 1,3 milhão de espectadores assistiram então ao primeiro longa-metragem de alcance popular a examinar – ainda a quente, com os militares no comando do país – a conduta subterrânea de alguns dos grupos responsáveis pelo golpe de 1964. A pouca distância histórica e as restrições impostas naquele momento pelo regime militar impediram que Pra Frente Brasil mergulhasse de forma mais incisiva no tema, mas a caixa de ressonância gerada por ele nos meios de comunicação e na sociedade civil foi um divisor de águas para o cinema nacional: estava oficialmente aberta a temporada de visita aos “anos de chumbo” pós-golpe de 1964.
Um quarto de século depois, aquele mesmo período especialmente simbólico na história do país, a circundar o tricampeonato no México e o acirramento do confronto entre o governo e as organizações clandestinas de esquerda, retornou às telas em O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger, sobre um menino cujos pais, militantes políticos de Belo Horizonte em fuga, o deixam aos cuidados do avô em São Paulo – sem saber que ele já não pode mais cuidar do neto. Não é, contudo, um caso isolado: agora, a distância histórica e o fim da censura incentivam diversos outros cineastas a se debruçar sobre episódios da ditadura, com tamanha recorrência que parece não haver espaço na agenda cinematográfica para dramas políticos preocupados com os anos Sarney, Collor, Itamar, FHC ou mesmo Lula.
A temporada de 2006 assistiu a Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, sobre a figurinista cujo filho, Stuart Angel, foi assassinado pelo regime militar nos anos 70, sendo ela própria morta em circunstâncias criminosas enquanto se dedicava a exigir explicações oficiais para o desaparecimento de Stuart. Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton, baseado no livro homônimo e autobiográfico de Frei Betto, conquistou os prêmios de melhor direção e fotografia no Festival de Brasília, e circulou em outros festivais até o lançamento comercial no país, em abril de 2007. São dois exemplos de reconstituição histórica baseada em episódios verídicos, mas houve também outras expedições ao período da ditadura, como Eu me Lembro, de Edgard Navarro, sobre um personagem de inspiração autobiográfica que precisou optar entre a luta armada e o “desbunde”; 1972, de José Emílio Rondeau, ambientado no ano do título; e os documentários Araguaya – A Conspiração do Silêncio, de Ronaldo Duque, O Sol – Caminhando contra o Vento, de Tetê Moraes, e Dom Helder Câmara – O Santo Rebelde, de Érika Bauer.
Na Argentina, as memórias da ditadura militar começaram a chegar ao cinema um pouco mais tarde do que no Brasil, em virtude do calendário político do país, com A História Oficial (1985), de Luís Puenzo, mas também se estendem até hoje, em filmes como Garage Olimpo (1999), de Marco Bechis, Kamchatka (2002), de Marcelo Piñeyro, Ilusão de Movimento (2003), de Héctor Molina, e Crônica de uma Fuga (2006), de Adrián Caetano. Qual o filme chileno de maior prestígio internacional nas últimas décadas? Machuca (2004), de Andrés Wood, que se ambienta no período imediatamente anterior ao 11 de setembro de 1973, quando foi deposto o presidente Salvador Allende e teve início a sangrenta ditadura comandada por seu comandante do Exército, general Augusto Pinochet.
Os projetos em desenvolvimento indicam que, ao menos no Brasil e na Argentina, os principais centros latino-americanos de produção (ao lado do México), os períodos de regime militar devem continuar em pauta.
O problema, claro, não está aí, e sim na paradoxal atrofia dessas mesmas cinematografias em tratar, com as ferramentas da ficção, de situações políticas atuais, em que não existem mais vilões ostensivos de farda contra os quais lutar, mas que ajudam a entender o complexo jogo de forças sociais e econômicas em ambos os países.

História e Cultura n° 3 Ano 3

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