Um recente concerto de câmara em São Paulo, em homenagem a Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), foi aberto por um ator vestido como um vienense do final do século 18 e que representava o compositor austríaco. Ele agradeceu a presença do público na comemoração “de meus primeiros 250 anos de nascimento”.
É como se ele também dissesse que serão comemorados os 300 anos, os 400 ou até mesmo os 500. Artisticamente, Mozart não morreu. Sobre quantos dos atuais compositores de música popular se poderá dizer o mesmo daqui a dois séculos?Mozart foi em definitivo um dos maiores gênios na história da música. E, de longe, o mais relevante do período do classicismo, que na história da música erudita está ensanduichado entre o final do barroco e o início do romantismo. Nos 30 anos em que Mozart escreveu música - ele começou aos cinco anos! - é plausível supor que existissem na Europa algo como em torno de 1.500 outros compositores profissionais.
Eram músicos de corte ou mestres de capela, encarregados das composições litúrgicas de suas cidades ou paróquias.
Mas eis que o tempo é uma peneira implacável. O critério da peneirada é a qualidade. O mesmo vale para a literatura, para a poesia. Deixam de sobreviver compositores merecidamente obscuros enquanto vivos ou então os que eram famosos porque sustentados por modismos circunstanciais- amigo de um nobre poderoso, amante de uma senhora com influente salão literário. Mozart passou pela peneira e chegou inteirinho até nós.
Vamos situá-lo primeiramente pela quantidade incrível de músicas que ele escreveu. São 626 peças, listadas no século XIX pelo musicólogo Ludwig Köchel - autor do catálogo em que as músicas são numeradas e seguidas pela letra “K” ou “KV”, como forma de identificação. Não são músicas de três ou quatro minutos.
São concertos de meia hora, óperas de mais de três horas de duração. Em 1991, quando se comemoraram os 200 aniversários de sua morte, a integral das composições de Mozart - peças completas e fragmentos inacabados - só coube em 130 CDs, lançados pela Philips. Ou seja, Mozart escreveu durante sua vida ativa o equivalente a 4,3 CDs por ano. Ou pouco mais de um CD a cada três meses, até morrer, antes de completar 36 anos.
Tudo isso, no entanto, seria irrelevante se não fosse também a qualidade da escrita e a beleza dessa imensa produção. Os temas são ousados, as variações, inusitadas, a polifonia, riquíssima, a instrumentação, deliciosa. Foram 22 óperas, oito missas, 56 árias de concerto, 41 sinfonias, 23 concertos para piano, seis para violino, 24 quartetos de cordas, 35 sonatas para violino e piano e 20 outras para piano solo.
Em seus dez últimos anos, Mozart trabalhou em Viena - uma cidade sofistica da, na época com 300 mil habitantes – e compunha por encomenda. O público estava mais interessado em entretenimento do que em verdadeira arte musical.
Mozart, no entanto, entregou ao seu “mercado” um produto de qualidade incomensuravelmente maior que a exigida.
Ele não foi propriamente um revolucionário.
Não chegou a virar a música de seu tempo pelo avesso. Seu papel no classicismo foi parecido ao de Bach no barroco: operou tamanha síntese na linguagem musical que, depois dele, as inovações precisavam ocorrer por meio de uma nova linguagem, no caso do período pós-Mozart, a do romantismo, que nasceu com Beethoven e Schubert.
São de Mozart muitíssimas das obras primas do repertório universal. Ouçam suas sonatas para piano, simples e econômicas ao extremo, ao menos quatro sinfonias, os seis quartetos de cordas dedicados a Joseph Haydn, os três concerto para trompa, quatro das óperas – A Flauta Mágica e as três escritas em parceria com o libretista italiano Lorenzo Da Ponte: “Don Giovanni”, “As Bodas de Fígaro” e “Così Fan Tutte”.
O pai de Mozart, Leopold, também era um compositor. Wolfgang Amadeus foi um menino prodígio, algo valorizadíssimo no século XVIII. Até os 25 anos ele morou em Salzburgo, cidade austríaca em que nasceu e que era muito provinciana para suas ambições artísticas. Casou-se com Constanza Weber, que viveu mais de 40 anos depois da morte dele e que editou –censurando – a imensa correspondência entre ambos e de Mozart com o pai.
Os biógrafos de Mozart se espantam pelo fato de ele não passar de um cidadão com a mentalidade própria à classe média não muito informada. Sua cultura humanística era pequena. Preferia o bilhar à literatura. Era franzino, feioso e de vasta cabeleira loira. Ria muito e falava palavrões com espantosa naturalidade.
Em cima dele foram construídos alguns mitos que são hoje dificílimos de limpar.
Não, Mozart não era pobre. Ganhava regiamente bem pelas obras que produzia. Tinha dívidas, mas era capaz de pagá-las. Não, Mozart não foi envenenado por Antonio Salieri, compositor oficial da corte dos Habsburgo e de certo modo seu rival. Ele morreu de febre reumática, infecção pulmonar e insuficiência renal. Não, Mozart não foi enterrado como indigente. O imperador José II, aliás um parente próximo do brasileiro Pedro I, proibira sepulturas individuais e fechou os cemitérios de dentro de Viena. Só autorizava valas comuns.
Foi numa delas que Mozart foi parar.
A imagem do compositor foi retrabalhada intensamente pelo romantismo, no século XIX, quando a mistura de individualismo com misticismo fez dele “um predileto de Deus”. Ao ouvir sua música, diziam os que lhe atribuíam poderes éticos, mesmo os mais pérfidos seriam incapazes de maldades.
Há por fim uma “indústria” construída em torno de Mozart. A Áustria está gastando 100 milhões de euros nas comemorações dos 250 anos. Quer atrair 3 milhões a mais de turistas. Em Salzburgo, Mozart é silhueta impressa em gravatas e nos invólucros de bombons. Seu nome virou marca, como se fosse Coca-Cola ou McDonald‘s. Paciência.
Ainda bem que a música dele não tem nada a ver com isso.
História e Cultura n° 1 Ano 2
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