A Copa do Mundo, assim como os Jogos Olímpicos, é uma imensa festa internacional. Mas é muito mais do que isso: ela galvaniza a vida planetária. Exatamente por exercer o futebol, mais do que as Olimpíadas, um poder tão extraordinário de mobilização das energias e do imaginário – é a “religião laica do povo”, na fórmula criada pelo historiador Eric Hobsbawn -, ele acaba tendo um significado político, econômico e cultural que transcende em muito o seu aspecto lúdico. A Copa de 1970 oferece dois exemplos extremos disso.
Naquele ano, o Brasil vivia a pior fase da ditadura, sob o comando do general Médici, quando milhares de brasileiros eram perseguidos, presos, torturados e assassinados. Mas a transmissão da Copa, pela Rede Globo – que, à época, ainda construía, com a valiosa ajuda da ditadura, a rede nacional de retransmissoras que permitiria a unificação virtual do país -, produziu um extraordinário clima de euforia. A música “90 milhões em ação”, transformada em hino informal, ajudou a abafar os gritos dos protestos contra o regime.A Copa assegurou um clima artificial de coesão nacional.
Em 8 de junho de 1969, a seleção de El Salvador foi a Honduras para disputar uma partida eliminatória para a mesma copa. Com o objetivo de prejudicar o adversário, os donos da casa organizaram um “apitaço” durante a noite e a madrugada. Os salvadorenhos não conseguiram dormir; perderam, por um a zero, e foram agredidos.
Uma semana depois, El Salvador deu o troco, agora como anfitrião: venceu os hondurenhos por três a zero e revidou a violência fora de campo. Os dois países romperam relações diplomáticas; em 14 de julho, El Salvador bombardeou Tegucigalpa (capital hondurenha). O conflito durou quatro dias (até ser resolvido com mediação da OEA) e causou duas mil mortes. El Salvador garantiu sua participação na copa, após bater os hondurenhos por três a dois, em território neutro.
É claro que o futebol, por si só, não explica a guerra: apenas, serviu como catalisador de tensões acumuladas – no caso, a ditadura hondurenha hostilizava 300 mil imigrantes salvadorenhos que buscavam empregos e terras no país vizinho. Tampouco o futebol pode ser responsabilizado pelo autoritarismo da ditadura militar brasileira: funcionou, apenas, como instrumento de propaganda do regime.
A história contemporânea registra, aliás, muitos momentos em que o futebol ocupou um lugar decisivo na história das nações, e não apenas durantes as copas.
Por exemplo, em 1942, na Ucrânia sob ocupação nazista, os alemães organizaram uma competição entre o Dínamo de Kiev e os soldados da Luftwaffe, a força aérea de Hitler. As partidas foram transformadas em uma espécie de alegoria da resistência nacional aos ocupantes: a vitória do Dínamo elevou extraordinariamente o moral e a capacidade de luta dos ucranianos. Outro exemplo, mais atual: o jogador palestino israelense Abas Suan é uma espécie de herói da seleção de Israel. “Faço todo o possível para manter e melhorar a coexistência entre os dois povos.
(...) Quero ajudar no relacionamento das pessoas que vivem aqui”, declarou o jogador ao jornal Jerusalem Post.
No mundo contemporâneo, a existência de uma mídia capaz de transmitir os jogos para todo o planeta, ao vivo e em tempo real transformam a Copa na metáfora por excelência do mundo globalizado, com todas as suas complexidades e contradições. Um bom exemplo foi o jogo entre Estados Unidos e Irã, em 21 de junho de 1998, em Lyon, na Copa da França. Havia expectativa sobre o que iria acontecer em campo, dada a situação de grande tensão entre os governos dos dois países. Para surpresa geral, os atletas entraram em campo de mãos dadas e trocaram flores. O gesto desarmou a hostilidade política. No final, o Irã venceu por dois a um e eliminou os Estados Unidos.
À aparência de um mundo uniformemente globalizado, corresponde uma tabela de jogos que produz a sensação de que o planeta inteiro compartilha um mesmo ambiente homogêneo e democrático. Aparentemente, há uma perfeita simetria entre os 32 países participantes, quando suas realidades são absolutamente diversas, dos mais ricos (como Estados Unidos, Japão, França, Alemanha e Inglaterra) aos mais pobres (Costa do Marfim, Togo, Paraguai). Não há simetria alguma. É mais ou menos como acontece na mesa de negociações da OMC: as regras são as mesmas para todos os membros, apesar das extremas disparidades verificadas entre eles.
Depois, vem o fato de que as atuais seleções nacionais merecem ser assim qualificadas apenas no sentido fraco da palavra “nacional”. A equipe brasileira é a maior prova. Seu “quinteto ofensivo” – os dois Ronaldos, Robinho. Adriano e Kaká – tem uma relação cada vez mais fraca com o Brasil. Estamos muito distantes dos tempos notados por Hobsbawn, no século XIX, quando o esporte em geral, e o futebol em particular serviram para sedimentar a identidade cultural dos estados nacionais em formação. Na era da globalização, o Estado Nacional, à semelhança das seleções, adquire novos significados e exige análises que não podem mais serem montadas com bases em parâmetros tradicionais.
Finalmente, a extrema valorização da indústria do entretenimento transforma a Copa em empreendimento bilionário. Não por acaso, a Fifa é palco de manobras políticas permanentes, de países e continentes que fazem de tudo para sediar o torneio. Para medir o significado dessa indústria, basta comparar os salários recebidos pelos ídolos atuais com os de Garrincha, um dos mais fantásticos jogadores de todos os tempos. Garrincha nunca ganhou o suficiente para ser considerado rico.
Apesar de tudo, a Copa do Mundo é e continuará sendo uma festa planetária. Do ponto de vista brasileiro, coube ao cronista Nelson Rodrigues explicar o por quê, ao comentar a vitória na Copa de 1958, na Suécia: “Já ninguém mais tem vergonha da sua condição nacional.
E as moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-lata. Sim, amigos: o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas. (...) Diziam que nós éramos a flor de três raças tristes. A partir do título mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, que o triunfo embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos. (...) – o brasileiro sempre se achou um cafajeste irremediável e invejava o inglês. Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: o verdadeiro, o único inglês é o brasileiro.”
Boletim Mundo n° 3 Ano 14
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