domingo, 18 de dezembro de 2011

ROSA DA PALAVRA, VEREDAS NO GRANDE SERTÃO DO SENTIDO

Paulo César de Carvalho

Pontaria, pontaria mesmo, quem teve nunca deixou de ter, foi Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa, esse o nome cabal e completo, homem de muitas letras, nenhum igual ninguém nunca nem viu. A pois, mano velho. Tino e siso era ali, jagunço de caudaloso cabedal, tiro certeiro no olho da onça jaguareté, pau a pau, pum e pum (...). Custoso é o mundo de entender,custosa a fala de Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa (...) Nenhuma lei de sã gramática aquele jagunço reverenciava (Paulo Leminski, “grande ser, tão veredas”, in Anseios crípticos 2, Curitiba, Criar Edições, 2001, p. 93)
Muitas vezes a epígrafe, isto é, o trecho colocado no início de um texto, serve como mero ornamento, nada ou pouco contribuindo para introduzir o assunto. O fragmento que abre este artigo, diferentemente, vem bem a calhar por uma série de razões.
Primeiro, por fazer menção a Riobaldo Tatarana, personagem do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (o título do texto de Leminski, a propósito, é um trocadilho-homenagem: “grande ser, tão veredas”).
Em segundo lugar, por fundir o nome do narrador-personagem ao do escritor, numa espécie de síntese que sugere a ligação de Rosa com sua obra maior (“R” de Rosa, “R” de Riobaldo). Terceiro, porque fala da dificuldade de entender o mundo (de se entender no mundo). Quarto, por apontar a dificuldade de compreender o que diz Riobaldo, perfeito exemplar do estilo de Guimarães, que tira o sono de tantos leitores: afinal, “nenhuma lei de sã gramática aquele jagunço reverenciava”. Em quinto, porque Leminski simula o estilo de Rosa, escreve um texto para falar sobre o escritor usando a mesma “língua” presente nas obras de Guimarães. Quer homenagem maior do que falar com alguém na língua dele?
A homenagem não é gratuita: os dois primeiros argumentos se justificam pelo fato de que estamos comemorando os 50 anos da publicação de uma das obras mais importantes da literatura brasileira – Grande sertão: veredas –, obra-prima de Guimarães Rosa, autor de Primeiras estórias, Sagarana, Corpo de baile (as duas últimas, aliás, também fazem aniversário: os contos de Sagarana, de 1946, operam como uma espécie de preparação para o romance publicado dez anos depois; Corpo de baile é de 1956). Essa efeméride – palavra pomposa para se referir a datas comemorativas – é a razão mais evidente, não única, deste artigo, que também celebra o “homem de muitas letras”, médico, contista, romancista, diplomata, estudioso das línguas.
Seu “nome cabal e completo” é “Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa”. Riobaldo é o narrador de Grande sertão, Rosa é o autor de carne e osso. Quem fala no texto é Riobaldo, tão de carne e osso como o autor. Mas o autor era médico; Riobaldo, jagunço. Quem fala no texto é o jagunço. O próprio Rosa várias vezes deixou clara a distinção: ele era ele; Riobaldo, Riobaldo. Em algumas das muitas cartas trocadas com o tradutor alemão de sua obra, Curt Meyer-Clason, lê-se o seguinte: “Certos detalhes mais tortuosos ou crespos do estilo de Riobaldo” (Guimarães Rosa, Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer Clason, Rio de Janeiro Nova Fronteira, 2003, p. 111); “em puro estilo riobaldiano” (idem, p. 186).
A obra apresenta as memórias do jagunço, contadas por ele a um interlocutor indefinido: a narrativa é um monólogo em que Riobaldo relata a um “doutor” de jipe que passava por ali uma sucessão de “causos”. A propósito, Rosa fazia a seguinte distinção entre as palavras “história” e “estória”, num dos prefácios a Tutaméia: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se parecida anedota”. Uma tem compromisso com o efeito de objetividade; outra, com o de subjetividade. Com “h” quer interpretar o “real”; sem “h” e com “e”, inventá-lo (em outros termos, mais rosianos, ouvindo Riobaldo, pensamos: não sei se é lenda ou se é real, só sei que assim é mais legal. Alguém emenda: então, registre-se a lenda.
Realidade ou ficção, o que importa é a dicção: rima e solução. O que importa é a invenção: leia e ouça a entonação! Importa o que está além da porta: a estrada é torta. Importa a travessia; importa a pontaria).
No texto de abertura, Leminski não à toa usa a palavra “pontaria” para falar do narrador-personagem: Tatarana integrou um bando de jagunços, tornando-se chefe por sua pontaria certeira, razão que lhe rendeu o apelido de “Lagarta de Fogo”. Quando bem jovem, fez um pacto com o Demônio, para vingar a morte de seu chefe Joca Ramiro. Depois conheceu Reinaldo, filho do chefe morto. Sentiu atração pelo jagunço, que na verdade era uma mulher chamada Diadorim, disfarçada para vingar a morte do pai. Depois de muitas andanças e histórias, entre Deus e o Demo, entre o bem e o Mal, entre veredas e sertões, o monólogo chega ao fim com o duelo entre Diadorim e Hermógenes (assassino de Joca), a morte de Diadorim e a descoberta de seu sexo.
Dupla pontaria: personagem e narrador – A palavra “pontaria” tem tudo a ver para tratar desse “western sertanejo” (aliás, poderíamos também dizer “faroeste caboclo”, título de uma canção do Legião Urbana). A pontaria não é só do personagem, mas também do narrador: é tanto daquele que age quanto do que relata; é a pontaria literal do personagem e a pontaria figurada do que conta a história.
Riobaldo, assim, divide-se em dois: é ao mesmo tempo o contador dos fatos e aquele que os viveu. De certa forma, é o relato de um sobrevivente. Assim, é como se dissesse: “Vim, vi e venci”. O mesmo Riobaldo que antes tanto agiu, põe-se depois tanto a pensar: numa espécie de exercício de auto-crítica, de balanço da existência, o sujeito da ação se converte em juiz de si mesmo; o sujeito do fazer vira objeto do sujeito do julgar.
Parece que a obra nos ensina que, no final das contas, depois de tudo, o mais legítimo juiz de nossos atos somos nós mesmos: o julgamento mais duro ocorre no tribunal de nossas consciências. Tudo o que carregamos da vida são nossas memórias, o passado lembrado que não desgruda de nós. Aliás, nas palavras do próprio narrador personagem: “O que lembro, tenho”. Nessa perspectiva, a escolha do foco narrativo é fundamental: se outro, que não o próprio Riobaldo, contasse a história, as inquietações perderiam o impacto. Afinal, como diz o dito popular, “cada um sabe onde morde o borrachudo”. E pouco importa que Riobaldo seja um bruto; como ensina mais uma vez o ditado popular, “na brutalidade do ferreiro, tem uma delicadeza escondida”.
O homem, além do bem e do mal – Aqui entra nosso terceiro argumento: o mundo é complexo, a delicadeza convive com a brutalidade; o mesmo homem temente a Deus é o que mata, sob as ordens do Diabo, com quem faz pacto. O homem não é catalogável, não é só bom ou apenas mau. Recorrendo a um filme de Glauber Rocha influenciado pelo sertão de Rosa, podemos dizer que o homem é Deus e o Diabo na terra do sol.
E estar ou com Deus ou com o Diabo não deve ser entendido apenas em sentido literal, mas também em sentido figurado. Em outros termos, não se trata apenas de uma questão “religiosa”: a palavra “Deus” pode representar também a escolha dos valores considerados permitidos pela sociedade; a palavra “Demônio”, em contrapartida, é a opção pelos valores interditados pela sociedade. Não é sem razão que se diz que alguém que não se comporta do modo considerado socialmente adequado está “com o diabo no corpo”. “Estar com Deus”, nessa perspectiva, é “andar no bom caminho”, agir conforme a “normalidade”. Assim, um jagunço “machão” apaixonar-se por um homem seria obra do demo...
E não adianta tentar remediar as coisas, disfarçar, dizendo que Reinaldo era de fato Diadorim: Riobaldo se apaixonou por ele antes de saber que era ela. Eis o seu drama: como um Hamlet sertanejo, ser ou não ser, eis a questão! Ele ou ela: o que fazer com a paixão? Em outros termos: o ser está com Deus ou com o Demo? A conjunção “ou” indica opção, a escolha entre algo ou o oposto.
A conjunção “e” mostra que somos resultado da soma, não da exclusão. A complexidade do ser humano vem daí mesmo: ele carrega em si termos contrários, construindo sua identidade exatamente na contradição.
Riobaldo ensina que o homem não é isto ou aquilo, mas isto e aquilo: é Deus e é Demo. Independentemente da língua, da cultura, da religião, somos todos Riobaldo: eis a universalidade de Rosa. Afinal, como diz no conto “O Espelho” (que dialoga com o conto homônimo de Machado de Assis), de Primeiras estórias, “tudo é a ponta de um mistério”: “quando não acontece nada, há um milagre que não estamos vendo”.
A vida é feita de sertões e veredas – O ser humano não é só luz nem só trevas, não é só bondade nem só maldade, não é só ação nem só pensamento: como a pororoca, é fruto do encontro das águas. É isso, aliás, o que sugerem os dois pontos no título, separando o sertão das veredas – Grande sertão: veredas: de um lado, a escassez do sertão; de outro, a abundância das veredas. O ser humano está nesse difícil intervalo, entre a saciedade e a falta, a plenitude e a vacuidade.
A saga de Riobaldo é a de todos nós: o sentimento de que falta algo é o que move o sujeito em busca do que lhe possa suprir essa ausência. Aliás, o nome Riobaldo é uma palavra composta por justaposição: “Rio” + “baldo” (“desprovido de”, “carente”). “Baldo” é o antônimo de “abundante”.
É ausência de água, de comida, de gente: a fome vai mais além do estômago... É fome em sentido literal e fome em sentido figurado: fome do que se come, fome de vingança. Nomeio o homem. No meio, a fome. O nome do homem é Riobaldo: o “baldo” é que leva ao “rio” (vazio em busca de recheio).
O sujeito só se move por obrigação ou por necessidade, isto é, só se desloca porque deve fazer ou porque quer fazer algo. Então, o que está antes dos dois pontos do título parece motivar, justificar, a procura do que está além: andando no sertão, buscamos as veredas... Em outros termos, na escuridão, procuramos as luzes. Em Rosa, nada é gratuito, os dois pontos põem os pingos nos is: o sentimento de falta no sertão motiva o desejo pela saciedade do oásis. É como se o Demo reclamasse a Deus: a vereda do céu nasce do inferno do sertão. A ponte entre os dois: os dois pontos. A vida, assim, é uma travessia (aliás, última palavra do romance), repleta de belezas e riscos. Nas palavras de Riobaldo: “viver é muito perigoso”.
O artesão da língua – A palavra “artesanato” é interessante para nos referirmos metaforicamente à escrita de Rosa por uma série de razões. Por exemplo, remete ao trabalho de quem escrevia primeiro a mão, sem o auxílio da máquina. O artesanato se opõe, assim ao trabalho industrial, rápido, mecânico, repetitivo, não-criativo: a escrita de Rosa era artesanal, no sentido de que era minuciosa, paciente, criativa. Rosa escrevia “chinesamente”...
Rosa escrevia em português, mas num português-rosa (palavra, cor, cheiro...). Inventou uma língua dentro da língua: “Meus livros são escritos em um idioma próprio, um idioma meu (...); não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros” (aliás, Rosa tem um dicionário só dele: O Léxico de Guimarães Rosa, organizado por Nilce Sant’Anna). Palavras como “embriagatinhava” (isto é, “embriagado” + “engatinhava”); “adormorrer” (“adormecer” + “morrer”); “terrivorosos” (“terríveis” + “pavorosos”), etc.
Rosa escrevia, reescrevia, rereescrevia, rerereescrevia, sempre em busca “da” palavra, obcecado pelas possibilidades e impossibilidades da língua. Como diz Manuel Bandeira, ele “deforma as palavras, desintegra-as, recompõe-nas, faz alquimias, cirurgia plástica, sei lá o que seja.
De ‘Hitler’ e ‘atrocidade’ já fez ‘hitlerocidade’, monstro esplêndido”.
“Nonada”, que significa “nada” (que é diferente de não significa nada) é menos que “tutaméia”, que significa “quase nada” (que é diferente de não significa quase nada). Nada diz tanto: 50 anos não é nada para quem já conquistou a imortalidade. Ave, palavra: evoé, Guimarães. Grande ser, tão Rosa: a eternidade te saúda!

História e Cultura n° 3 Ano 2

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