Uma saída para o atoleiro iraquiano: esse é o tema que concentra as atenções da elite formuladora da política externa americana.
Fora de um círculo de dogmáticos que repete há anos os mantras da Doutrina Bush, ninguém mais acredita nas estratégias radicais elaboradas nos dias seguintes aos atentados de 11 de setembro de 2001.A revista Foreign Affairs abriu o debate com um artigo de Stephen Biddle, um especialista do Conselho de Relações Exteriores, respeitado núcleo de análises de política externa. Biddle tenta separar “Iraque” de “Vietnã”, argumentando que a violência crescente no primeiro não é uma insurgência nacionalista, como a que expulsou as forças americanas do segundo, nos anos 60 e 70, mas uma “guerra civil entre comunidades”. A sua receita é promover uma mediação entre xiitas, sunitas e curdos, misturando força e ameaças para impor um acordo. Se necessário, os Estados Unidos deveriam até mesmo usar a ameaça da retirada para pressionar xiitas e curdos a uma composição aceitável para os sunitas.
Larry Diamond, da Hoover Institution, outro núcleo respeitado, discorda de Biddle. Ele não crê em duendes e, portanto, reconhece que, junto com a “guerra civil entre comunidades”, há uma insurgência nacionalista no Iraque. Isso significa que a “ameaça” de retirada americana seria um ultimato vazio, pois grande parte das forças políticas iraquianas poderiam desafiar o blefe.
James Dobbins, da conservadora Rand Corporation, não vê alternativas a uma rápida retirada. No tom característico dos velórios, ele sugere que os Estados Unidos renunciem ao discurso da “democratização do Oriente Médio” e peçam ajuda aos países árabes e à ONU para obter um mínimo de estabilidade no Iraque, a fim de organizar uma saída honrosa.
Honra e retirada: não há como afastar o espectro histórico do Vietnã. Leslie Gelb, presidente do Conselho de Relações Exteriores, e Chaim Kaufmann, da Lehigh University, tocam essa melodia, em tons não muito diferentes. Gelb propõe dividir o Iraque numa frouxa confederação, como prelúdio à partida. Kaufmann imagina que esse será o resultado inevitável dos crescentes conflitos sectários no país e que só resta às forças americanas fingir que são “capacetes azuis” da ONU e proteger os civis durante os ciclos de “limpeza étnica” que já se esboçam.
Há meia década, as perspectivas eram outras. Reagindo ao 11 de setembro, Bush proclamou a “guerra ao terror” e deflagrou a operação no Afeganistão. O mundo estava com os Estados Unidos quando o regime fundamentalista do Talebã foi derrubado e os chefes da Al-Qaeda passaram a ser caçados nos desfiladeiros e cavernas das montanhas afegãs. Mas a unidade trincou logo depois, com o discurso do “Eixo do Mal”, no início de 2002, e com a arrogante proclamação da “guerra preventiva”, meses mais tarde.
Poucos, fora do círculo dos fiéis neoconservadores, se deixaram comover pela rede de mentiras que preparou a invasão do Iraque. Atrás do discurso sobre as armas de destruição em massa, emergia a estratégia de reformar o Oriente Médio segundo a vontade de Washington. O Iraque seria o passo inaugural na marcha batida de derrubada dos regimes iraniano e sírio, com a imposição de protetorados diretos ou informais americanos. A “segurança energética” e a “guerra ao terror” alinhavam-se num único raciocínio estratégico de inspiração imperial.
Os desastres acumularam-se, depois da ofensiva triunfal a Bagdá. Sem o apoio da França e da Alemanha, e sob a desconfiança ou a hostilidade aberta dos países árabes, os Estados Unidos afundaram-se na lama da ocupação do Iraque. O terror atacou em Madri e em Londres, evidenciando a difusão da mensagem sangrenta de Osama Bin Laden. Ao mesmo tempo, o mundo conheceu a rede internacional de centros de tortura operada pelos serviços secretos americanos nas prisões do Afeganistão, do Iraque e de Guantánamo (Cuba).
Sinais de uma “reforma do Oriente Médio” foram anunciados por Washington, com grande estardalhaço, quando o assassinato do líder libanês Rafik Hariri, em fevereiro de 2005, deflagrou a chamada “revolução do cedro”. Instalou-se então no Líbano um governo de unidade nacional, que restaurou a soberania do país e conseguiu a retirada das tropas da Síria.
Mas o Líbano soberano não se tornaria um país alinhado aos Estados Unidos, como ficou evidente pela participação de ministros do Hezbollah no novo governo e pelo recente ataque de Israel ao país.
A estratégia geral de Bush não contemplou uma paz negociada entre Israel e os palestinos. Na visão de Washington, o conflito seria solucionado pelo enfraquecimento do lado palestino e, no fim, pela imposição de uma paz com anexações, nos termos de Israel. Contudo, a ferida aberta nos territórios ocupados só produziu violência e radicalização. A vitória dos fundamentalistas do Hamas nas eleições palestinas de janeiro fechou um ciclo e evidenciou que não haverá paz sem negociações.
Os planos de “reforma do Oriente Médio” incluíam a derrubada do regime anti-americano no Irã. Entretanto, a crise permanente no Iraque reforçou a posição regional iraniana. O regime de Teerã ampliou sua influência sobre os xiitas iraquianos e engajou-se na obtenção das tecnologias de armas nucleares.
Cinco anos atrás, Bush promoveu um consenso nacional em torno da sua “guerra ao terror”. O consenso partiu-se lentamente mas não explodiu nem mesmo depois dos insucessos iniciais da ocupação do Iraque. Hoje, ele evaporou. No fim de agosto, o senador Joe Lieberman, um dos raros líderes do Partido Democrata que jamais vacilou no apoio à aventura iraquiana, pediu a renúncia do Secretário da Defesa Donald Rumsfeld e acenou com a idéia de uma conferência internacional sobre o Iraque. Se Lieberman saltou do navio é porque o naufrágio não pode mais ser evitado.
Boletim Mundo n° 5 Ano 14
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