quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

EVO MORALES ENCARA A “MALDIÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS

O primeiro presidente boliviano de origem ameríndia anuncia a sua política para o gás e o petróleo. As resistências internas podem se revelar mais profundas do que os atritos externos.
Newton Carlos

O registro de que a Bolívia é o mais pobre país sul-americano tem como acompanhante certo uma outra observação: a de que Bolívia dispõe de muito petróleo e das segundas maiores reservas de gás natural (só perde para a Venezuela) do subcontinente.
É um paradoxo que persegue os bolivianos desde os tempos da pilhagem colonial. Riquezas que acabaram construindo uma “maldição dos recursos naturais”, expressão usada com freqüência pelos jornalistas americanos e europeus que tentam entender o que se passa num país que, finalmente, elegeu um presidente de extração ameríndia.
Os ameríndios representam 55% da população do país.
A “maldição dos recursos naturais” começou com o saque, por parte dos colonizadores espanhóis, das minas de prata de Potosi. Bem mais tarde, a Bolívia chegou a produzir 53% do estanho consumido no mundo. Metal del Diablo é o título de um livro de Augusto Céspedes, editado no Brasil há muitos anos. Bolivianos miseráveis tiravam das entranhas da terra, em trabalho quase escravo que destroçava seus pulmões, o que se tornaria matéria-prima das naves espaciais.
Para onde iam as rendas geradas por essa atividade desumana? Os “colunáveis” internacionais conheceram as festas “romanas” da família Patiño, dona das minas em parceria com empresas estrangeiras. Todo o estanho era processado na Grã-Bretanha. Patiño chegou a ter a segunda maior fortuna do universo, um dos capítulos mais trágicos e mais revoltantes da “maldição”.
O domínio dos Patiño rivalizou, em termos predatórios, com a prata tirada de Potosi, que financiou o império espanhol e foi ponto de partida dos cada vez mais lembrados 500 anos de exploração. Em Réquiem para uma República, Sergio Almaraz escreveu que “é preciso conhecer um acampamento mineiro do Altiplano para saber o quanto um homem pode resistir”. Na extração de estanho, a expectativa de vida era de 38 anos. O índice de tuberculose alcançava 60%.
Em 1952 aconteceu na Bolívia a segunda grande revolução social do continente. A primeira foi a do México, entre 1910 e 1917. A revolução boliviana assestou um duro golpe na “maldição do estanho”, com a nacionalização das minas, mas sobreveio a “restauração”, as minas entraram em declínio e o que sobrou foi a retórica de uma esquerda impotente insistindo em que “é preciso resgatar as teses de 1952”. Até que surgiu Evo Morales e o projeto de controle nacional sobre o gás e o petróleo.
O novo presidente boliviano cita a “maldição” como referência das promessas de virada da mesa. Eis o que Morales disse, textualmente: “Para os Estados Unidos, a guerra à droga é pretexto com vistas a poder controlar melhor outros países. Na América Latina, falam em narco- terrorismo.
No Iraque, em intervenção militar preventiva e armas de destruição maciça. Mas o que querem, de fato, é  controlar o petróleo e o gás.” A declaração é confusa.
Seu sentido, no entanto, está mais do que claro: o que deveria ser um presente dos céus, um subsolo rico, gerou cobiças nos mais fortes e desgraças para os mais fracos vivendo em cima desse subsolo. Encerradas primeiro a tragédia e depois a efêmera redenção do estanho, a “maldição” se concentrou no petróleo e no gás e o “fenômeno” Evo Morales se definirá pelo que o presidente conseguir nessa área, sobretudo no que se refere ao gás.
Estão em jogo investimentos de três bilhões de dólares.
Uma “diplomacia do gás” entrou em cena com as visitas de Morales ao Brasil, programada, e à Argentina, de surpresa. O objetivo foi estabelecer pontos concretos de referência que se aplicariam à totalidade dos investidores estrangeiros. Morales deu “garantias judiciais” aos investimentos da Petrobrás. A Bolívia cobre a metade do consumo brasileiro. O que Morales quer é reformular contratos com empresas multinacionais, feitos com base num decreto, e que passariam a se basear na nova lei de hidrocarbonetos. Essa lei introduz um novo imposto, de 32%, sobre a extração de gás e petróleo. Ele se somará aos 18% cobrados a título de royalties, já em vigor. Serve para todos a promessa feita ao Brasil, de que não haverá expropriações e serão respeitados os direitos legais.
A nova lei recupera a propriedade do Estado na “boca do poço”, que se encontrava nas mãos de 20 empresas multinacionais desde 1997. Na visita à Argentina, foi dado o recado de que será necessário, de agora em diante, “olhar para cima na escala de preços do gás boliviano”.
Foi suspenso o preço do “gás solidário” dado à Argentina em razão da crise energética no país vizinho. Os argentinos terão de pagar o mesmo cobrado ao Brasil. A intenção é melhorar continuamente os preços, de preferência por meio de negociações.
Não se trata, no entanto, para Morales, de questão puramente externa, a cargo da “diplomacia do gás”. A questão é também interna, o que pode dar novo ânimo à “maldição”. O ciclo de conflitos que resultou na eleição de Morales começou com manifestações populares contra a venda de gás “em estado natural” aos Estados Unidos, via Chile. Bolívia e Chile guerrearam no século XIX e os chilenos tomaram a saída para o mar dos bolivianos.
Os dois países até hoje vivem às turras.
A chamada “guerra do gás”, que preparou a vitória eleitoral de Morales, mostrou rachaduras profundas entre o Altiplano, onde predominam sentimentos nacionalistas, e as terras baixas, as províncias orientais de Santa Cruz e Tarija, onde se concentram as elites empresariais contrárias a esse nacionalismo. A conseqüência imediata e perigosa da nova política de Morales para o gás é o fortalecimento de separatismos em províncias onde a maioria das empresas de energia  têm sua base. Tarija controla 85% das reservas conhecidas de gás e quer vendê-las livremente. O ministro da Defesa da Argentina disse que Tarija anda namorando a idéia de anexação “a outro país”. O dele é o mais próximo.
As províncias bolivianas já conseguiram autonomia.
“O certo seria separar-se pura e simplesmente”, diz Zvonko Matkovic, da Câmara de Indústria e Comércio de Santa Cruz. Trata-se da capital econômica da Bolívia: nos últimos anos, Santa Cruz foi responsável por 50% do PIB do país. Na província, estão 60% dos poços de petróleo e 90% da indústria nacional. Os “cruceños” comandam as exportações agrícolas.
“Há mais de 40 anos carregamos nas costas a economia da Bolívia”, se queixa, com visão histórica estreita, o advogado Rubem Costa, presidente de um Comitê Cívico recheado de separatismos. Morales perdeu em Santa Cruz. Se o Altiplano vai para um lado e as terras baixas bolivianas para o outro, seria o mais profundo trauma geopolítico na América Latina, desde o século XIX.

Boletim Mundo n° 1 Ano 14

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