terça-feira, 27 de dezembro de 2011

BABEL EM ESCALA GLOBAL

Sérgio Rizzo

Uma história alternativa do cinema poderia ser contada por meio de projetos que jamais saíram do papel, como a biografia de Napoleão que seria dirigida por Francis Ford Coppola e estrelada por Al Pacino, reeditando a dupla da trilogia O Poderoso Chefão. (Pacino não desistiu do personagem: seu nome foi recentemente associado a uma cinebiografia do imperador francês a ser dirigida por Michael Radford, de O Carteiro e o Poeta.)
Como seria, por exemplo, A.I. - Inteligência Artificial (2001) se Stanley Kubrick (Laranja Mecânica) pudesse dirigi-lo, e não Steven Spielberg (E.T.)? Ou o Titanic que Alfred Hitchcock realizaria em sua chegada aos EUA? A contribuição brasileira a esse banco de grandes projetos frustrados inclui Intolerância II, o sugestivo nome de trabalho (referência ao clássico lançado por D. W. Griffith em 1916) do longa-metragem que Fernando Meirelles gostaria de ter dirigido logo em seguida a Cidade de Deus (2002).
A trama seria ambientada em diversos países e continentes, girando em torno do que o título sugere – a crescente intolerância nossa de cada dia. Primeiro, Meirelles anunciou que ele e o roteirista Bráulio Mantovani (que escreveu Cidade de Deus a partir do livro de Paulo Lins, e que mais recentemente colaborou em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger) haviam suspendido o projeto por conta de outros compromissos profissionais.
Na ocasião, o diretor assumira O Jardineiro Fiel (2005), que critica a indústria farmacêutica a partir de um romance de John Le Carré.
Mais tarde, no entanto, Meirelles comunicou que Intolerância II estava definitivamente abortado. Não explicou os motivos, mas suspeita-se que atenda pelo nome de Babel (2006). Ainda que os propósitos e as abordagens fossem diferentes, é provável que as semelhanças na concepção geral já fossem o bastante para que, no restrito nicho de circulação internacional para filmes não-norte- americanos, o eventual filme de Meirelles soasse agora como uma espécie de déjà-vu. Pena.
Não deixa de ser sintomático, entretanto, que Meirelles e o diretor mexicano Alejandro González Íñarritu – com a valiosíssima contribuição do roteirista Guillermo Arriaga, seu parceiro também em Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003) – tenham pensado, quase ao mesmo tempo, em criar um flagrante do que ocorre hoje no mundo em forma de narrativas paralelas ambientadas em cenários socioculturais bem distintos, mas integrados de forma complexa e, muitas vezes, perversa.
A estratégia pressupõe que, para expor o alto grau de conexões registrado hoje no planeta, para o bem e para o mal, uma boa alternativa seria o uso dos procedimentos de Robert Altman em escala global. Morto em 20 de novembro do ano passado, Altman notabilizou-se, em filmes como Nashville (1975) e Short Cuts – Cenas da Vida (1993), pelo emprego habilidoso de uma estrutura narrativa entrecortada que salta de um personagem para outro (e de um ambiente para outro) sem a habitual relação causal.
Seus filmes lembravam que o mundo é complexo, fruto de experiências múltiplas, mas, no máximo, exploraram a simultaneidade de eventos e suas intersecções no raio de alcance de uma metrópole (Los Angeles, por exemplo, em Short Cuts, cujo roteiro foi costurado por Altman com base em contos de Raymond Carver).
Íñarritu e Arriaga, que haviam recortado a multiplicidade sociocultural da Cidade do México em Amores Brutos, materializam o conceito de aldeia global em Babel. Tudo parece muito próximo, como sugere diariamente o noticiário da televisão. Na ordem cronológica, os eventos relatados pelo filme fluem assim: um rifle comprado no Japão é presenteado a um marroquino, que o repassa a um camponês cujos filhos brincam no deserto com a arma, até ferir gravemente uma turista norte-americana de San Diego, onde – por conta do nervosismo do marido, que autoriza por telefone uma insensatez – seus filhos viverão um pesadelo ao acompanhar a governanta mexicana, que vive ilegalmente nos EUA, a uma festa em Tijuana, do outro lado da fronteira.
Em Seis Graus de Separação (1993), dirigido por Fred Schepisi e escrito por John Guare (a partir de peça teatral de sua autoria), brinca-se com a idéia de que estamos separados de qualquer outro cidadão do planeta por um circuito de até cinco pessoas. Por exemplo: a brasileira Mariana tem aula com o professor José, que estudou na Espanha com a francesa Brigitte, que é amiga da indiana Mira, que conheceu em uma viagem o japonês Takeshi, que trabalha em uma multinacional com o norte-americano David, que passou as férias no hotel do italiano Giovanni. Entre Mariana e Giovanni, seis graus de separação.
Babel faz o mundo parecer uma ciranda drummondiana como essa, mas não foi o primeiro a estabelecer paralelos intercontinentais. Pouco se falava em globalização nos meios de comunicação de massa quando Jim Jarmusch lançou Noite sobre a Terra (1991), que narra, ao longo de uma madrugada que os fusos horários não deixam terminar, cinco histórias envolvendo taxistas em cinco diferentes metrópoles: Los Angeles, Nova York (EUA), Paris (França), Roma (Itália) e Helsinki (Finlândia).
Ainda hoje um autêntico representante do modo de trabalho independente no cinema dos EUA, Jarmusch já havia extraído bons resultados de choques culturais: em Estranhos no Paraíso (1984), imigrantes húngaros perambulam, completamente deslocados, pelos EUA; em Daunbailó (1986), um italiano (Roberto Benigni, muito antes da fama internacional com A Vida é Bela) faz amizade em uma prisão com dois norte-americanos, e sem falar mais do que duas ou três frases em inglês.
Em Noite sobre a Terra, concentrado na penumbra primeiro-mundista de algumas das principais cidades do Hemisfério Norte, o Terceiro Mundo (ou os fluxos migratórios que, em geral, têm origem nele) dá as caras justamente na figura de taxistas imigrantes, como o europeu (Armin Mueller-Stahl) que transporta um briguento casal de negros (Giancarlo Esposito e Rosie Perez) por Nova York, ou o africano (Isaach De Bankolé) que atende uma cega (Béatrice Dalle) em Paris. A globalização vista, portanto, como um processo que, encarado de forma positiva, possibilita a mobilidade das pessoas pelo planeta, mas que, analisado com menos ingenuidade, fornece mão-de-obra barata para os serviços menos nobres do Primeiro Mundo, a exemplo do que observa Coisas Belas e Sujas (2002), de Stephen Frears, a respeito dos imigrantes, legais e ilegais, em Londres.
A capital inglesa é também o oásis com o qual sonham os refugiados afegãos de Neste Mundo (2002), de Michael Winterbottom. Quase como se fosse um documentário, com o uso de atores não-profissionais e baseados em relatos verídicos, o filme acompanha a jornada de dois deles, de Peshawar (Paquistão), onde vivem a duríssimas penas, até o Reino Unido, onde esperam sobreviver com mais dignidade e, quem sabe, guardar algum dinheiro. Uma série de percalços e de aproveitadores (sim, neste mundo há quem queira passar rasteira até em refugiados afegãos) os acompanhará por Irã, Turquia, Itália e França. A precariedade e a clandestinidade da viagem mantêm o espectador, desde o início, com a desagradável sensação de que as coisas não vão terminar bem.
Como também não terminam bem, e para quase todos os habitantes do planeta, na impressionante distopia criada por Filhos da esperança (2006), de Alfonso Cuarón, inspirado em romance de P. D. James. Em 2027, com o planeta à beira do caos devido a inúmeros conflitos, a humanidade corre o risco de ser extinta porque um vírus não identificado provocou a esterilidade de todas as mulheres.
Uma jovem negra, no entanto, consegue engravidar, e fica sob controle de uma organização clandestina que planeja usá-la para obter dividendos políticos.
Enquanto essa trama se desenvolve, conhecemos uma Londres pior do que os piores pesadelos sobre imigração: em torno de uma zona militarmente protegida (mas nem por isso segura) para circulação de cidadãos britânicos, um cinturão de pobreza que inclui campos de concentração para “alienígenas”. Filhos da esperança é um filme de ficção científica e apenas especula sobre as condições sociais do planeta em futuro relativamente próximo, mas sugere que a globalização, da forma como é conduzida hoje por grandes potências e corporações, acelerará o processo de concentração de riqueza e não levará ninguém a porto seguro, nem mesmo a minoria beneficiada economicamente por ela.
O papel dos chineses nesse tabuleiro é o que procura vislumbrar O Mundo (2004), de Jia Zhang-ke. Para falar da nova ordem planetária, o filme não precisa se afastar de um parque (que de fato existe) nas cercanias de Pequim: ali, em uma espécie de pequena Las Vegas erguida com finalidade cultural, réplicas em miniatura de cidades e de marcos arquitetônicos de diversos países convivem lado a lado, em outra perturbadora materialização da idéia de proximidade trazida pela globalização, sobretudo porque o parque não é visto pela perspectiva dos visitantes, e sim dos que o mantêm em funcionamento.
A classe operária, como já lembrava em 1971 o filme de Elio Petri, nunca chega ao paraíso.
Nem tudo são espinhos, entretanto, na maneira de o cinema olhar para o novo desenho do planeta. Em Albergue Espanhol (2002), de Cédric Klapisch, estudantes de diversos países se conhecem em Barcelona (Espanha) e muitas vezes se digladiam por conta de suas diferentes visões de mundo e do papel que seus países representam na ordem planetária. Ao final, o protagonista, um jovem francês (Romain Duris) que afinal retorna para a vida de adulto em Paris, titubeia entre a rendição ao “sistema” e a busca de outro caminho, profissional e pessoal. Na continuação, Bonecas Russas (2005), reencontramos os mesmos personagens anos depois, em Moscou – e não deixa de ser reconfortante descobrir que, apesar de insatisfeitos (e, ainda bem, inquietos), esses esperançosos pais dos filhos de amanhã parecem ter aprendido a pensar globalmente e a agir localmente, como a militância ambiental ensinou e a ação política jamais deveria esquecer.

História e Cultura n° 2 Ano 3

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