sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

UMA REPÚBLICA ISLÂMICA PATROCINADA POR BUSH?

Projeto de Constituição iraquiana submete os direitos das mulheres à “sharia” enquanto organizações xiitas criam os alicerces de uma teocracia.

Newton C arlos
O Iraque é tido como “os Bálcãs do Oriente Médio”. O país resultou da junção arbitrária de três províncias (Bagdá, Mosul e Basra) tomadas pelos britânicos do Império Turco-Otomano derrotado na Primeira Guerra Mundial (1914-18). Embates históricos endêmicos (mandonismo sunita sob Saddam Hussein, mandonismo xiita sob a ocupação americana) irromperam com a redação da Constituição que dará formato a um “novo Iraque”. Aliados aos curdos, cujo sonho é ter o seu próprio lar nacional, os xiitas tratam de impor seu modelo.
As seitas sunita e xiita têm sua origem nas lutas pela sucessão do profeta Maomé. O Iraque é o único pais árabe onde os xiitas são majoritários. Estavam represados pela ditadura de Saddam Hussein, um sunita. Há forte presença xiita no sul do Líbano, representada pela militância, inclusive armada, do Hezbollah (o “partido de Deus”, financiado pelo Irã e pela Síria). O monarca da Jordânia, quase como porta-voz de outros palácios árabes, manifestou preocupação de que uma “onda xiita” varra o Oriente Médio e alcance as fronteiras de Israel com o Líbano, a partir do Iraque e sob a influência dos aiatolás do Irã. A busca do governo George Bush por uma solução política qualquer, que permita pensar numa retirada “honrosa” do Iraque, sob o argumento de que ele foi “democratizado”, agrava essa preocupação.
O texto constitucional imposto pelos xiitas no Iraque, com aval dos curdos, tem passagens floridas, invocando glórias do passado. Está escrito que “somos filhos da Mesopotâmia, terra dos profetas, lugar de repouso dos imãs sagrados, líderes da civilização, herdeiros dos criadores do alfabeto e berço da aritmética”. Há, no entanto, um ponto nevrálgico. Diplomatas americanos que deram sinal verde, tendo em vista os ultimatos de Bush exigindo o cumprimento de prazos exíguos, garantem que os direitos das mulheres estão contemplados no arcabouço de proteção dos direitos humanos. Os mais atentos advertem que isso não está claro e citam o artigo 90.
Segundo o artigo 90, a instituição que decidirá sobre os direitos das mulheres é a Suprema Corte Federal, na qual terão assento especialistas em “sharia”, a codificação das leis islâmicas. Tudo indica que a última palavra ficará, portanto, com a “sharia”. Além  disso já existem fatos consumados. A principal organização política xiita, o Conselho Supremo da Revolução Islâmica do Iraque (SCIRI, na sigla em inglês), criado no Irã por exilados da ditadura de Saddam Hussein, impõe regras à sociedade e se infiltra em instituições de um Estado precário, como a polícia e o Exército criados pelos americanos.
“A liberdade que perdemos”, é a essência de um livro editado na Grã-Bretanha que reúne registros do diário de uma mulher iraquiana. Ela é formada em ciência da computação e se protege sob o pseudônimo de “Riverbend”. Antes da guerra, “trabalhei como programadora numa empresa do ramo em Bagdá”. Pode ter sido um trabalho com momentos de tédio, “mas recuando no tempo ele me reaparece na memória como maravilhoso”.
O que “estou tentando dizer é que as mulheres no Iraque estavam em situação muito melhor do que as mulheres de outros países árabes e até de alguns países ocidentais”.
Havia paridade de salários, “éramos médicas, advogadas, professoras, arquitetas, etc.”.
Riverbend soube que a empresa onde trabalhou tinha voltado a funcionar. “Foram necessários milhares de encontros e conversas com familiares para finalmente convencê-los de que era necessário à minha sanidade mental voltar a ter alguma atividade fora de casa”, registrou.
Aceitaram que “eu visitasse o antigo local de trabalho em companhia de dois homens da família, ambos primos”. Simplesmente “perguntei se eles (os gerentes) poderiam me encomendar alguma coisa que eu pudesse fazer em casa e prestar contas pela internet”. Um ex-companheiro “me olhou com ar de descrença e espanto, congratulou-me por estar viva”. Ela foi informada de que “mulheres não eram bem-vindas, especialmente mulheres que não pudessem ser protegidas”. Um conselho óbvio para que voltasse para casa, “porque se recusavam a assumir responsabilidades pelo que me acontecesse”.
Perdeu-se no lamaçal iraquiano em que se meteram Bush e seus falcões o desabafo de Donald Rumsfeld, secretário da Defesa, de que “xiitas com cheiro de Irã, nem pensar”. A Casa Branca tornou-se refém da maioria de muçulmanos xiitas. “Quanto mais tempo ficamos, mais o Iraque se parece com o Vietnã”, disse um parlamentar republicano, veterano da guerra no Sudeste Asiático.
Independente da nova Constituição, a radicalização islâmica já é corrente. Policiais xiitas assassinaram um jornalista americano que denunciava o “predomínio da religião” imposto por um partido e acobertado por um governo interino. De novo Riverbend. As mulheres não saem de suas casas sozinhas. Toda vez que “eu cruzo a porta sou acompanhada pelo meu pai, um tio ou primo, algum parente da confiança da família”. Mulher adulta ou adolescente corre riscos andando sozinha. É como se tivesse havido, na questão da liberdade das mulheres, um recuo histórico de 50 anos.
O fundamentalismo avança nas asas do SCIRI, que está empenhado em implantar o modelo de revolução iraniana no Iraque. Há algum tempo instala “seções especiais”, sobretudo perto de escolas, encarregadas de velar pela observância dos princípios islâmicos. Nada de blusinhas curtas, aparecendo o umbigo, ou de cabeças desnudas. Riverbend não pretende dar colher de chá a Saddam Hussein, mas denunciar os rumos que toma o “novo Iraque”. O objetivo, está segura, é torná-lo uma teocracia sob a regência de aiatolás xiitas.

Boletim Mundo n° 6 Ano 13

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