quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

COM AS MESMAS LETRAS

Paulo Bearzoti Filho

Em 1992, o então vice-presidente dos EUA (o presidente era Bush, pai), Dan Quayle, tomava parte, em Trenton, Nova Jersey, de uma competição escolar de spelling, ou seja, de “soletração”. Quando Quayle ditou a palavra inglesa correspondente a “batata”, o aluno William Figueroa, da 6ª série, grafou: potato. Estava certo, mas o vice-presidente julgou que faltava “uma coisinha” e fez o garoto acrescentar um e: potato e. Quayle estava habituado às gafes, mas esta ele próprio definiria como “um momento do pior tipo”.
Ortografia, de fato, é coisa séria e, como se vê, não é só no Brasil que ela causa dúvidas. Mas por que – terá pensando Quayle – tem de ser difícil?
Fonologia e etimologia – Em tese, sistemas de escrita alfabéticos poderiam ser de maneira tal que a cada letra correspondesse a um único fonema (som da língua) e vice-versa. Esse foi o caso do português até o século 16.
Todavia, o alargamento dos estudos clássicos fez que a ortografia se apoiasse não mais apenas na pronúncia, mas também na história. Ao lado da base fonológica, a escrita passou a incorporar também princípios etimológicos. Assim, por exemplo, o uso de s, c, ç ou ss não depende da pronúncia, mas da “origem” do vocábulo.
Etimologia, porém, não é uma arte fácil, e somente no início do século 20, a partir dos estudos de Gonçalves Viana, a escrita foi apurando sua precisão histórica e tornando-se mais simples. O que não foi sem custo nem desgaste. Houve reformas ou tentativas de reforma em 1911, 15, 19, 24, 29, 31, 38… até que no começo dos anos 1940 a ortografia de Portugal e Brasil já não apresentava traços etimológicos do grego (theatro, pharmacia, mysterio), consoantes dobradas (anno, bello), grande parte das consoantes não pronunciadas (septe, lucto) e regularizara a acentuação gráfica.
Ortografia não é língua – Embora semelhantes, a ortografia brasileira e a portuguesa apresentam diferenças que recobrem cerca de 4% do léxico total. Em 1945, um acordo firmado entre os dois países e adotado em Portugal nunca foi ratificado pelo Brasil. Nesse contexto, o atual Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa pretende unificar o sistema ortográfico empregado nos países lusófonos.
Observe-se, porém, que ele não atua sobre a língua em si.
Como é natural em se tratando de um idioma transcontinental, falado por mais de 200 milhões de pessoas, o português apresenta variações, mesmo em sua pronúncia considerada culta. Assim, os vocábulos de pronúncia divergente continuariam a ser grafados de maneira diferente. Se, por exemplo, em Portugal se diz Jugoslávia e, no Brasil, Iugoslávia, esse nome é grafado, lá, com J e, aqui, com I.
A questão são as diferenças propriamente ortográficas. O nome do profissional que interpreta papéis dramáticos é pronunciado do mesmo modo no Brasil e em Portugal.
Contudo, lá se grafa actor e, aqui, ator.
É uma distinção puramente ortográfica, do tipo daquelas que, segundo os princípios do Acordo, não devem mais existir.
Aplicado esse conceito, modifica-se cerca de 0,5% do léxico brasileiro e 1,6% do lusitano. Como as diferenças de pronúncia persistem, cerca de 2% do léxico total se mantém com dupla grafia.

QUAIS SÃO AS MUDANÇAS
Confira alguns pontos do novo Acordo Ortográfico:

a) Na enunciação do alfabeto, passa-se a incluir as letras k, w e y. Na realidade, os dicionários já incluem essas letras, e seu uso não é alterado pelo Acordo.
b) Eliminam-se as consoantes “mudas”, ainda presentes na grafia adotada em Portugal em vocábulos como acção ou Egipto.
c) O uso de acento agudo ou circunflexo pode variar, nos casos de pronúncia diferente: Vênus, prêmio e matinê, no Brasil, mas Vénus, prémio e matiné, em Portugal.
d) Os ditongos abertos éi e ói deixam de ser acentuados em palavras paroxítonas, como assembléia e heróico, agora assembleia e heroico. Contudo, esses ditongos continuam acentuados em vocábulos oxítonos ou monossílabos, como em anéis e heróis.
e) Não são mais acentuadas as formas crêem, dêem, vêem, lêem e derivados.
f ) Não são mais acentuados os hiatos com duplo oo, como em vôo, enjôo.
g) O trema não é mais utilizado (a não em certos estrangeirismos). Assim, seqüestro passa a sequestro.
h) Não se empregam mais os acentos  diferenciais da forma verbal pára e pélo e dos substantivos pólo e pêlo. Mantém-se, porém, a distinção entre pôde e pode, e passa-se a aceitar, facultativamente, o acento em fôrma, para distingui-la de forma.
i) Na chamada “regra do hiato”, não se acentuam mais as vogais i e u quando precedidas de um ditongo. Assim, feiúra e baiuca, e não mais feiúra e baiúca.
j) Há várias alterações nas regras (bastante complexas e confusas) para o emprego do hífen. Por exemplo, certos compostos perdem o hífen, como paraquedas e mandachuva.
Como se vê, as alterações são muitas, mas dizem respeito a áreas relativamente não nucleares do vocabulário. Se o Acordo for efetivamente implantado – repitamos: se for implantado –, será necessário reformular milhões de livros, todos  teremos de reaprender algumas regras, e os revisores eletrônicos de textos perderão parcialmente sua validade. Mas a ortografia manterá dificuldades e pormenores que ainda exigirão certo preparo e muito cuidado para não passar pelo “momento do pior tipo” que tanto mal fez à carreira do jovem Dan Quayle. Num mundo em que escrita é poder, a ortografia nunca perde a majestade.

A forma e a fôrma
Embora elimine a maioria dos acentos diferenciais, o Novo Acordo oficializa a distinção entre fôrma e forma, adotada, por exemplo, pelo dicionário Aurélio, que havia sido abandonada em 1943. Ponto para o velho e heróico lexicógrafo, que, com razão, assinala que a extinção desse acento tornava incompreensíveis jogos de palavra como este, do poeta Manuel Bandeira: “Vai por cinqüenta anos / Que lhes dei a norma: / Reduzi sem danos / A fôrmas a forma”.

História e Cultura n° 6 Ano 3

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