A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras.”
A citação acima, extraída da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, adotada em 2001 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), serviu de base para a prova de redação do Enem deste ano, sob o título: “O desafio de se conviver com a diferença”.À primeira vista, a proposta do tema, em si mesma, constitui um hino ao entendimento entre os seres humanos, idéia reforçada por outra afirmação de seus autores: “Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta.
Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse sentido, ser diferente já não parece tão encantador.”
O problema é que a prova faz exatamente o contrário do que pretendem os seus proponentes: caminha, perigosamente, por veredas que conduzem ao racismo e, no limite, às idéias eugênicas tão caras a um certo Adolf, ao sustentar a existência de uma analogia entre a “diversidade biológica” natural e a “pluralidade de identidades” humana.
A idéia é integralmente equivocada. Tem como base o positivismo cientificista do século XIX, mentalidade que permitiu o florescimento das teorias de Herbert Spencer e daquilo que hoje qualificamos como darwinismo social (termo popularizado, em 1944, pelo historiador Richard Hofstadter).
Em 1859, o naturalista britânico Charles Darwin (1809 – 1882) revolucionou o mundo científico de sua época, ao publicar o livro A origem das espécies. Darwin explicava a evolução e a diversidade dos seres vivos por meio de um processo de seleção natural. Um grupo de cientistas evolucionistas, dos quais o mais conhecido, provavelmente, é Herbert Spencer, passou a defender a tese de que as “diferenças raciais” entre os seres humanos decorre do mesmo processo.
Entre os humanos, venceriam os grupos mais preparados para enfrentar as adversidades naturais e a competição com outros grupos humanos (a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, erradamente atribuída a Darwin, foi formulada por Spencer). Com isso, a ciência da época fornecia aos defensores do escravismo um belo argumento: os negros tinham mesmo que ser escravos, por pertencerem a uma raça situada em algum ponto inferior da escala evolutiva.
Belo argumento, também, para justificar o imperialismo europeu: no encontro com outros povos, a sociedade européia, obviamente superior a todas as outras, era portadora de uma missão civilizatória. Mesmo pensadores revolucionários caíram na armadilha do eurocentrismo: Karl Marx elogiava o “progresso” levado a todos os cantos do mundo pela indústria capitalista.
Essa fase da história é analisada, de maneira brilhante, por Edward Said, no livro Orientalismo, base para os estudos pós-coloniais contemporâneos.
E pelo mesmo caminham enveredaram aqueles que, por exemplo, tentavam explicar a pobreza nos grandes centros urbanos formados pela revolução industrial: os mais aptos às novas condições de vida enriqueceram, ao passo que outros, não tão evoluídos, foram condenados à miséria, não por qualquer causa inerente ao capitalismo, mas por um processo de seleção natural. O mesmo vale para explicar as altas taxas de criminalidade nos centros urbanos: não eram as precárias condições de vida dos mais pobres que alimentavam o crime, mas sim causas naturais, explicadas pela teoria da evolução das espécies.
Um exemplo fantástico desse tipo de raciocínio é oferecido pelo conde Arthur de Gobineau (1816 – 1882), escritor e diplomata francês que viveu certo tempo no Brasil.
Amigo íntimo do imperador D. Pedro II, com que manteve correspondência até o fim da vida, escreve pérolas do tipo: “Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto.”
Ou então: “A América do Sul, corrompida em seu sangue crioulo, não dispõe de qualquer meio, doravante, para deter o declínio dos mestiços de todas as variedades e de todas as classes. Sua decadência é irremediável.”
E o darwinismo social serviu também de inspiração às “teorias” nazistas segundo as quais a sociedade humana funciona como um organismo, eventualmente atacado por “cânceres” e “tumores” que deveriam ser extirpados: arianos com “defeitos de nascimento”, judeus, ciganos, comunistas, socialistas etc. Não por acaso, a categoria profissional que mais quadros ofereceu ao nazismo foi a dos médicos, como esclarece Peter Cohen, no seu brilhante documentário “Arquitetura da destruição” (1989).
Hitler, como se sabe, era vegetariano radical e amava a paisagem natural germânica, fonte de inspiração para seus discursos sobre higiene social e estética. Claro que não se trata, aqui, de condenar os vegetarianos nem os ecologistas, mas sim de advertir para o perigo embutido nas analogias equivocadas. Não há, simplesmente não há como comparar o mundo das forças cegas e caóticas que constitui o mundo natural aos processos políticos, econômicos, sociais e culturais que constituem as sociedades humanas.
Por mais elevada que tenha sido a intenção dos examinadores do Enem – não se trata, aqui, de adivinhar os seus propósitos – o resultado foi um preocupante desastre.
História e Cultura n° 6 Ano 3
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