É bem provável que o bombardeio aéreo da cidade basca de Guernica pela Legião Condor, tropa de elite nazista, em 26 de abril de 1937, seja um dos horrores mais conhecidos e lembrados da história das guerras em todo o mundo. Mas, comparativamente, está muito longe das piores tragédias (o que não torna o ataque menos terrível ou mais aceitável, é evidente).
O número de mortos, algo jamais estabelecido, mas situado entre os 200 e os 1.600, nem sequer longinquamente se compara, por exemplo, aos 140 mil de Hiroxima e 70 mil de Nagasaki, graças às bombas atômicas despejadas pelos Estados Unidos, respectivamente, em 6 e 9 de agosto de 1945, ou aos 35 mil da cidade alemã de Dresden, bombardeada durante 15 horas consecutivas por britânicos e norte-americanos, em fevereiro do mesmo ano. A lista de horrores, enfim, é imensa.Como explicar, então, a sinistra “popularidade” de Guernica?
A primeira resposta é cruelmente cínica: os responsáveis pelo bombardeio foram o lado perdedor da Segunda Guerra Mundial, embora o general Francisco Franco, aliado de Adolf Hitler, tenha vencido a guerra civil (1936 – 39) dentro de seu próprio país. Guernica foi exibido ao mundo como um exemplo da atrocidade nazista, junto com o extermínio de judeus, comunistas, socialistas e ciganos. As barbaridades cometidas pelo lado dos “mocinhos” foram, convenientemente, atiradas para baixo do tapete ou explicadas como “medidas inevitáveis de guerra”.
A segunda resposta, um pouco mais complicada, refere-se ao ambiente psicossocial que se respirava no mundo à época do ataque. Quando os horrores de Guernica foram revelados ao mundo, pelo correspondente George Steer, por meio dos jornais The Times e New York Times, em 28 de abril, houve uma grande comoção por parte de uma opinião pública que ainda não havia sido exposta aos horrores do nazismo, nem ã ameaça nuclear. Claro que a Primeira Guerra Mundial havia sido uma cornucópia de atos bárbaros, mas, novamente, nada comparáveis à indústria da morte inaugurada pela Segunda Guerra.
O que se sugere, aqui, é que houve, nas décadas seguintes, uma crescente perda de sensibilidade para o horror, ou a “banalização do mal”, na fórmula consagrada por Hannah Arendt.
A terceira resposta remete a uma das mais complexas questões na esfera do conhecimento e do debate ideológico: a relação entre arte e política. O horror de Guernica foi retratado e eternizado por Pablo Picasso, um dos mais importantes artistas plásticos do século XX. A história é bem conhecida: a pedido do governo republicano espanhol, o pintor preparava um quadro para ser exibido na Exposição Internacional de Paris, que seria aberta em maio de 1937, quando leu os relatos de Steer, republicados pelo jornal comunista francês L’Humanité. Indignado, Picasso dedicou todo o seu gênio criativo ao quadro, finalmente exposto pela primeira vez em Paris, que se tornaria uma espécie de símbolo mundial da luta contra a barbárie.
É difícil, talvez impossível dissociar a tragédia de Guernica do quadro do Picasso.
Não houve nada equivalente, no caso de Hiroxima, de Dresden ou do holocausto nazista, talvez até porque os artistas tenham se sentido impotentes para retratar tamanho horror. “Depois de Auschwitz, tornou-se impossível fazer poesia”, disse o filósofo alemão Theodor Adorno. É óbvio que ele não se referia a uma impossibilidade técnica (qualquer um sabe fazer uma rima), mas à perda de sentido da cultura diante dos portões do inferno aberto pelo próprio ser humano. Nessa perspectiva, talvez o quadro Guernica tenha sido o último grande gesto de triunfo do artista como um rebelde político.
Picasso tinha plena consciência de sua importância e de seu papel na resistência à tirania representada pelo general Francisco Franco, e não hesitava, quando se tratava de colocar sua genialidade a serviço da causa. “O que você acha que é um artista? Um imbecil, que só tem olhos se for pintor, orelhas se for músico, ou uma lira em todos os cantos do coração se for poeta, ou até, se for lutador de boxe, apenas músculos? Pelo contrário, o artista é ao mesmo tempo um ser político, constantemente alerta diante dos eventos mundiais dolorosos, ardentes ou prazerosos, elaborando, com todas as peças, a sua imagem”, declarou o artista à revista Les Lettres Françaises, em outubro de 1951. Guernica é um panfleto, um manifesto, mas é também infinitamente mais do que isso. É uma obra de arte universal. Mas quantos artistas conseguem, de fato, produzir a síntese entre arte e política, sem diminuir e deformar uma e outra?
“Hoje, um quadro como Guernica simplesmente não seria mais pintado”, afirmam os editores da revista História viva, em sua edição 46, dedicada à lembrança da tragédia espanhola. A razão para isso, alegam, é o processo de banalização do mal, a que já nos referimos. No mundo da guerra – espetáculo e da desumanização do humano, já não há mais espaço para aquela espécie de ira sagrada que emana da obra de arte. Não há como discordar.
Mas a discussão é bem mais complicada, pois coloca em jogo o estatuto mesmo da arte no mundo contemporâneo, do lugar do artista como autor e do tempo de fruição da obra, quando os sentidos são tomados de assalto pela velocidade da Internet.
Guernica continuaria sendo um horror em nosso mundo. Mas Picasso ainda seria Picasso?
História e Cultura n° 5 Ano 3
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