quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

PALPITE FELIZ

Heitor Augusto

O chefe da folia  pelo telefone manda me avisar...” que há 90 anos o primeiro samba, justamente o dos versos acima, foi gravado. A imponência do fato começa pela força do nome do autor da melodia: Ernesto Joaquim.
Para a história do samba, Donga, apelido que o consagrou como um dos grandes no samba. O parceiro, autor da letra, foi Mauro de Almeida – no reduto dos bambas, o apelido não era tão digno assim: Peru-dos-Pés-Frios.
Pelo Telefone foi gravado em 1917 por Bahiano, um dos cantores da Casa Edison, a primeira gravadora brasileira.
Apesar das diversas discussões em torno da música – seja em relação a autoria, ao ritmo (se era samba realmente) e ao status de primeiro samba gravado – o fato é que Donga a registrou em 1916, com direito a certificado emitido pela Biblioteca Nacional para comprovar.
Mas em 2007 também se comemora outra data importante para o samba: há 70 anos “toda a cidade soluça/ comovida se debruça/sobre o caixão de Noel...”, como registrou o poeta Sebastião Fonseca. Aos 26 anos, período suficiente para compor mais de 250 músicas, Noel Rosa deixou de agitar as ruas de Vila Isabel e foi batucar pelas bandas lá de cima – ou, dependendo do ponto de vista, pelas bandas de baixo.
A relação entre a gravação de Pelo Telefone e morte de Noel vai além da coincidência de terem ocorrido em anos de final 7. O samba de Donga ajudou a estabelecer um gênero que hoje é conhecido como o símbolo de identidade nacional. Já a obra de Noel consolidou a formatação do samba à maneira que ouvimos hoje, seja em relação ao ritmo, acompanhamento e tempo de música.

Donga e a casa da Tia Ciata
Quem a freqüentou ou conhece as histórias dos sambistas que lá pousavam sua criatividade para rituais religiosos seguidos de muita música assegura que Pelo Telefone surgiu das animadas reuniões da casa da Tia Ciata.
Nascida em Salvador em 1854, aos 22 anos a dona da casa, cujo nome de batismo é Hilária Batista de Almeida, deixou a Bahia e ancorou na “Pequena África”, termo cunhado por Heitor dos Prazeres para a região carioca onde vivia uma grande quantidade de negros ex-escravos ou nascidos livres.
A casa de Tia Ciata,  mãe-de-santo e cozinheira de mão cheia, reunia pessoas de diversas camadas sociais. Entre eles, um escritor que usou a matriarca como personagem em livro. “Um longo corredor levava a uma segunda sala reservada ao culto do candomblé, para a alegria e alívio do povo negro e dos muitos curiosos de outras raças e crenças, entre eles o escritor e folclorista Mário de Andrade, que ali esteve, por volta de 1928, buscando inspiração para um dos capítulos de seu célebre Macunaíma”, como está ilustrado em Heitor dos Prazeres – Sua Arte e Seu Tempo, organizado pelo filho, Heitorzinho dos Prazeres e Alba Lirio.
Quando Tia Ciata já beirava os 60, e mesmo assim continuava com o remelexo nas ancas, um time de sambistas novatos, dignos de vestir a camisa da seleção brasileira do samba, se formava: João da Baiana, Pixinguinha, Donga, Heitor dos Prazeres, Cartola, Caninha, entre outros.
E muitos deste elenco brigaram pela autoria de Pelo Telefone, pois os sambas da casa tinham o dedo de todo mundo: marcava-se o ritmo e conforme a festa se animava, versos eram introduzidas  no ritmo do bater das palmas.
Nelson Sargento, compositor da Estação Primeira Mangueira à época que a escola tinha em suas fileiras compositores do calibre de Cartola e Carlos Cachaça, compara a estrutura do primeiro samba gravado com o que se faz hoje no samba de roda. “Você já foi a uma roda de samba? O cara vai e põe um refrão e todo mundo começa a cantar um verso”.
Outra discussão em torno de Pelo Telefone é se de fato a música poderia ser considerada um samba. Nem os autores se entendem: Donga, que compôs a melodia, a define como “samba amaxixado”. Para Mauro de Almeida, autor da letra, a música é um “tango-samba”. Os versos de Heitor dos Prazeres ilustram a mistura dos ritmos: “Baião, baião, baião/Filho do Maracatu,/Descendente do lundu,/Neto do cateretê”. Nelson Sargento sintetiza: “O samba é o final de todos os ritmos que existem nesse país”.
A chegada do bebê Noel de Medeiros Rosa ao berço de Vila Isabel quase foi impedida em duas ocasiões. Na véspera do nascimento, aconteceu o segundo levante de marinheiros negros contra as humilhações de seus superiores hierárquicos, episódio conhecido como Revolta da Chibata. Depois de terem estremecido a então capital Rio de Janeiro em 22 de novembro de 1910, os marinheiros foram traídos pelo presidente Hermes da Fonseca, que prometera anistia aos revoltosos. Na segunda tentativa, o governo já estava de sobreaviso e reprimiu violentamente o movimento.
A outra culpada que quase impediu o nascimento de Noel foi a bacia de dona Martha, sua mãe, estreita para o menino de quatro quilos que tentava escapar do ventre materno. Os médicos decidiram pelo emprego do fórceps.
O bebê finalmente veio ao mundo, mas com uma seqüela que seria  motivo de chacota por quase toda a vida: o maxilar deformado, que lhe rendeu o apelido de “queixinho” na escola.
Em 1929, Noel dá os primeiros passos rumo ao reconhecimento musical ao ingressar no Bando de Tangarás, grupo liderado por Almirante e composto também por Braguinha, Henrique Brito e Alvinho. A primeira composição, a embolada Festa no Céu, foi escrita no ano seguinte. À época, o Brasil iniciou um intenso processo de transformações culturais e políticas. Em 22, aconteceu a Semana de Arte Moderna, que fortaleceu as discussões sobre a identidade brasileira. Oito anos depois, Getúlio liderou uma revolução que desbancou a política do café com leite – revezamento de paulistas e mineiros na presidência do País.
Na mesma década, dois livros estremeceram a intelectualidade brasileira: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, que repensou o estigma do mestiço no Brasil; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, publicado em 1936, que detectou a cordialidade como traço de nossa sociedade.
Esta mesma cordialidade Noel havia retratado em Cordiais Saudações, de 1931. “Em vão te procurei, notícias suas não encontrei/Eu hoje sinto saudades/Daqueles dez mil réis que te emprestei”. Com extrema polidez, o personagem vai cobrar o dinheiro que emprestara a um enrolão que de necessitado não tinha nada – afinal, Noel manda beijos para o cachorro, ao passarinho e à empregada do devedor.
O primeiro sucesso veio por meio da composição Com que roupa, dos famosos versos “Com que roupa que eu vou/Ao samba que você me convidou”. A música se propagou pelas ruas da cidade rapidamente, pois a identificação foi imediata: Noel falava para um público sem recursos financeiros, mas que sempre dava um jeito de se virar nas situações adversas. Cantou a situação de muitos brasileiros. Em torno da maneira de enxergar o brasileiro e, em particular, o malandro, Noel Rosa e Wilson Batista protagonizaram uma das maiores disputas do samba.
A interpretação que Noel deu a Com que roupa foi uma mudança radical na história da música popular. Até então, só se sobressaiam cantores com vozerão, o chamado “dó de peito” – como o de Bahiano, que interpretou o primeiro samba gravado, Pelo Telefone. Noel pegou o gingado do ritmo e transportou para a sua voz, quase que falando em alguns trechos da música. A mesma roupagem ele deu a Gago apaixonado, sátira a um jovem enamorado que ficou gago devido a falsidade da amada. O jeito de cantar, sem esticar notas e sílabas, abriu caminho para intérpretes consagrados, como Nora Ney, que praticamente falava, João Gilberto e Nara Leão.
A passagem de Noel pelas bandas terráqueas é recheada de histórias pitorescas. Uma delas envolve a covardia do poeta, bom no samba e ruim de briga. O compositor teve a cabrocha que flertava roubada por um marinheiro musculoso. Em apuros, Noel bateu à porta de Heitor dos Prazeres, de conhecida habilidade na capoeira. Chegando ao bar onde o marinheiro estava, o amigo bom de pernada chegou colocando banca e sua fama passou de boca em boca em instantes. O marinheiro, amendrontado, foi-se embora e deixou a cabrocha. “Os dois ficaram tomando vermute com amendoim e acabaram mandando a mulher embora para beberem sossegados”, conta o filho Heitorzinho dos Prazeres. A noite terminou com Noel dando palpites na última estrofe de uma letra que Heitor estava arredondando. Resultado: Pierrô Apaixonado, estrondoso sucesso do carnaval de 1936, no qual Noel o compositor da Vila consta como parceiro.
O fim da trajetória de Noel foi cravado em 1937, aos 26 anos. A saúde não resistiu aos incontáveis cigarros e garrafas de cerveja, consumidos mesmo quando o compositor já estava com a tuberculose em estágio avançado.
“Adeus cantor da seresta/Que tinhas sempre a alma em festa/Ainda quando sofrias...”.

História e Cultura n° 4 Ano 3

Nenhum comentário:

Postar um comentário