quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

AS DUAS MURALHAS DA PALESTINA

A IRONIA NÃO TEM LIMITES: ISRAEL, QUE DURANTE OS  DIAS DA PAZ DE OSLO REJEITAVA O USO DOS TÍTULOS “GOVERNO”, “PARLAMENTO”, “PRESIDENTE” E PRIMEIRO-MINISTRO” QUE ALUDEM À SOBERANIA, AGORA OS ENFATIZA PARA ALIMENTAR A ILUSÃO DA EXISTÊNCIA DE UM GOVERNO PALESTINO – NÃO UM QUE SEJA UM PARCEIRO, MAS UM QUE AGUARDARÁ A OPORTUNIDADE PARA JUNTAR OS PEDAÇOS QUE ISRAEL DEIXA PARA TRÁS APÓS SATISFAZER SEUS INTERESSES DEMOGRÁFICOS. [...]. E EIS OUTRA RAZÃO PARA O NÍTIDO INTERESSE DE ISRAEL EM NUTRIR A ILUSÃO DE UM GOVERNO PALESTINO E SUA APARÊNCIA DE SOBERANIA: SE ESSE GOVERNO NÃO EXISTE, AS FONTES DE AJUDA ESTRANGEIRA SECAM, EXPONDO O FATO DE QUE A OCUPAÇÃO ISRAELENSE – TANTO A DIRETA COMO A INDIRETA – É FINANCIADA NA SUA TOTALIDADE PELOS ORÇAMENTOS DOS “ESTADOS DOADORES”.
(MERON BENVENISTI, ARTICULISTA ISRAELENSE NO JORNAL HAARETZ, 26/1/06)

Desde a criação do Estado de Israel, em 1948, o cenário político do país foi dominado por dois grandes partidos: os trabalhistas, de centro-esquerda, e a direita conservadora, que acabou se agrupando no Likud. Hoje, porém, há um só grande “partido” político no país, chamado Ariel Sharon, primeiro-ministro afastado por conta de um acidente vascular cerebral (AVC) e que, em meados de fevereiro, oscilava entre a vida e a morte.
Vivo ou morto, porém, Sharon deverá continuar dando as cartas na política israelense por meio de seu novo partido, o Kadima (Avante, em hebraico), franco favorito nas eleições parlamentares marcadas para o final de março. Esse dar as cartas tem como eixo a imposição de um plano de devolução de parte da Cisjordânia e fixação unilateral das fronteiras de Israel. Uma imposição, claro, aos palestinos, que exigem a devolução de toda a Cisjordânia, assim como de Jerusalém Oriental, territórios ocupados por Israel em 1967. Mas, uma imposição também para parte da sociedade israelense, que é contrária a concessões aos palestinos, principalmente após a vitória eleitoral do Hamas.
Foi uma retirada unilateral semelhante – da Faixa de Gaza, em 2005 – que consolidou Sharon como o estadista israelense mais forte das últimas quatro décadas e permitiu a criação do Kadima, logo transformado em peça-chave do tabuleiro político.
Isso porque Sharon, primeiro-ministro do Likud em uma coalizão com os trabalhistas, não tinha o apoio de seu partido para retirar as tropas israelenses de Gaza. Em uma manobra ousada, Sharon deixou o Likud e fundou o Kadima ao lado de outros ministros, com destaque para o veterano trabalhista Shimon Peres, que havia perdido o comando de seu partido.
A retirada de Gaza reduziu a intensidade de atentados terroristas, trazendo um pouco de paz a Israel, após anos de turbulências.
Coisa que nem os trabalhistas – autores da mais ousada proposta de paz aos palestinos, incluindo sua soberania parcial sobre setores de Jerusalém – nem o Likud, com sua política linha-dura – haviam conseguido.
Esse sopro de paz explica a força de Sharon, vivo ou morto, e de seu partido.
“Sharon é o único capaz de fazer a paz”, afirmou Shimon Peres, ele mesmo derrotado pela estagnação das negociações com a Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Uma provável vitória do Kadima nas urnas representará um sinal verde dos israelenses à política de devolver parcelas da Cisjordânia, enquanto se prepara a anexação de fato do Vale do Jordão, onde estão as fontes de água e as terras mais férteis da região, assim como a maioria das colônias que alojam cerca de 200 mil israelenses.
A desocupação certamente viria acompanhada de protestos dos colonos judeus de extrema-direita, assim como pelo fim de qualquer conversa sobre devolver Jerusalém Oriental, de maioria árabe, selando – com sólidos muros de contenção – as novas e picotadas fronteiras de um futuro Estado palestino. Um relatório recente, elaborado pelo consulado da Grã-Bretanha em Jerusalém Oriental (e que a União Européia rejeitou como “excessivamente unilateral”), acusa Israel de já estar anexando terras árabes próximas à cidade milenar e afirma: “quando o muro estiver concluído, Israel irá controlar todos os acessos a Jerusalém Oriental, isolando- a das cidades satélites palestinas de Belém e Ramallah, assim como da Cisjordânia”.
As fontes da estratégia do Kadima encontram-se na dinâmica demográfica na Palestina. O crescimento vegetativo muito mais elevado da população árabe criará, em pouco tempo, uma maioria demográfica palestina no conjunto formado por Israel, pela Cisjordânia e pela Faixa de Gaza. Israel não tem alternativas  senão promover a fixação definitiva de fronteiras entre o Estado judeu e um Estado palestino ou engajar-se na missão inviável de assegurar o poder da minoria judaica sobre a maioria árabe. É essa razão estratégia que uniu Sharon a Peres.
Com o Kadima e sua solução unilateral comandando Israel, e o Hamas, que não reconhece o Estado judeu, à frente da  ANP, a paz parece perdida nas brumas de um futuro improvável. É como se duas muralhas, construídas com os tijolos da ideologia e do ódio, impedissem o diálogo.
Mas, no Oriente Médio, quase nada é o que parece. Em artigo recente, publicado no diário israelense Haaretz, o analista Aluf Benn observa uma semelhança muito interessante entre o Kadima e o Hamas.
Os dois têm planos ideológicos de longo prazo: o Kadima almeja anexar de vez parte da Cisjordânia, assim como Jerusalém Oriental; o Hamas pretende varrer Israel do mapa. Mas os dois demonstram sinais de pragmatismo que poderão conduzir a acordos transitórios que durem muito tempo, talvez até o amadurecimento de gerações menos rancorosas, dos dois lados.
Afinal, Sharon, o general linha-dura que defendia o Grande Israel, incluindo quase todos os territórios palestinos, terminou desocupando Gaza de forma unilateral.
E o Hamas, apesar da retórica e dos homens-bomba, admite uma hudnah, uma trégua de longo prazo com o inimigo.
De acordo com a lógica própria do Oriente Médio, Kadima e Likud poderiam dar o primeiro passo para que seus planos finais (o Grande Israel ou os judeus atirados ao mar) evaporem silenciosamente ao longo dos anos, sob o sol do deserto.
Não por acaso, o analista Bradley Burston afirmava com bom humor, em recente artigo no jornal The Jerusalem Post: “Se você quer o Grande Israel, vote na esquerda”.
Sim, porque foram os trabalhistas (e não a direita) os responsáveis pelo início da colonização judaica nos territórios palestinos ocupados na Guerra dos Seis Dias (1967). Quem planejou as primeiras 16 colônias foi Israel Galili, um socialista. Na mão oposta, um primeiro-ministro ultraconservador, Menahem Begin, devolveu ao Egito a península do Sinai, ocupada por Israel em 1967. Sharon, outro direitista, deixou Gaza. E seu sucessor, provavelmente o ex-ministro das Finanças, Ehud Olmert, quer sair já de partes da Cisjordânia.
Começando por Hebron, onde, diz -se, está enterrado um patriarca de judeus e muçulmanos: Abraão/Ibrahim, conforme a preferência. E onde 400 colonos judeus de ultra direita vivem, protegidos por forças militares, entre 120 mil palestinos.
A sombra de Sharon poderia, portanto, empurrar o Kadima a uma curiosa aproximação com o Hamas em uma situação de “nem guerra nem paz”, onde Israel e a Palestina se tolerem. Ou não – e nesse caso a violência explodiria com mais força do que nunca, em meio a um Oriente Médio desestabilizado pela Doutrina Bush e pelo avanço dos fundamentalistas.

Boletim Mundo n° 1 Ano 14

Nenhum comentário:

Postar um comentário