A humanidade convive com uma lista terrível de ameaças, reais ou imaginárias, potencialmente capazes de aniquilar centenas de milhões de seres. Já não há a perspectiva de um futuro tranqüilo para a humanidade como um todo, ao passo que a vida passa a ser sentida e encarada como uma guerra permanente a ser travada por cada indivíduo.
Como contrapartida, fracassaram as grandes narrativas que, pelo menos ao longo dos dois últimos séculos, foram capazes de oferecer explicações razoáveis sobre o funcionamento do mundo e apontavam soluções. O alarme foi acionado pelo movimento da contra-cultura, nos anos 60, quando os jovens denunciavam o legado da Guerra Fria. O socialismo, tentado na União Soviética e China, degenerou em monstruosas ditaduras do partido único. O capitalismo provoca cada vez maior desigualdade e gera todo o tipo de iniqüidades cotidianas. Sua face neoliberal leva ao limite a desumanização do ser humano, ao afirmar o indivíduo em detrimento da sociedade.É o mundo do “eu sitiado”, sintetizam alguns pensadores do contemporâneo, para descrever sociedades fragmentárias, despedaçadas, em que cada um se cerca das garantias que consegue e pode reunir. A humanidade se divide em castas, grupos que se constituem segundo suas possibilidades materiais.
Entre os abonados, seres solitários se encerram em fortalezas, blindam carros, freqüentam clubes fechados, contratam forças paramilitares, fazem seguro de todos os tipos (de vida, contra roubo, contra terceiros, contra invalidez e morte, de saúde; a cantora e atriz Jennifer Lopez fez seguro estimado em 60 milhões de dólares de uma parte de seu corpo – os glúteos - considerada vital para a sua carreira).
A classe média alimenta sonhos de consumo e tenta, em alguma medida, reproduzir o estilo de vida dos mais ricos. Mas o máximo que consegue é criar o inferno para si própria: milhões vivem vidas sem sentido algum, comprimidos entre o desejo de ter mais e o pânico de perder o pouco que ainda têm (o temor da proletarização, para adotar uma expressão sociológica).
Os miseráveis que se amontoam em favelas se organizam em bandos, ou usam o próprio corpo como arma. A imensa maioria vive aterrorizada em barracos, teme a ação dos narcotraficantes, das milícias e da polícia. Submete-se a condições desumanas de trabalho (um imenso contingente é obrigado a despertar no meio da madrugada para chegar ao local do emprego, quando há, no início da manhã, para ganhar um salário mínimo após 30 dias extenuantes), muitos são empurrados à prostituição, à prática de pequenos crimes, à mendicância, ao desespero alcoólatra.
Nada disso é rigorosamente novo. Em meados do século XIX, Karl Marx já assinalava o fato de que o capitalismo cria sociedades apenas aparentes, pois, sob o signo da concorrência e da desigualdade, aquilo que une os seres humanos é também aquilo que os separa: a luta pelo emprego, por prestígio, pelo poder, por dinheiro e privilégios. A vocação história da sociedade capitalista, nessa perspectiva, é a fragmentação, a alienação, o enfeitiçamento provocado pelo talismã mercadoria. Espera-se que os objetos (roupas, carros, sapatos, móveis, cigarros, refrigerantes, cervejas etc.) garantam, como objetos mágicos, a felicidade que já não se encontra em lugar algum.
A arte mundial da passagem do século XIX para o século XX registra prodigamente o “mal estar na civilização”, magistral fórmula sintetizada por Sigmund Freud para descrever a inarredável e insolúvel cisão entre pulsão e cultura. Do romance de Fiodor Dostoievski à dramaturgia de Bertolt Brecht, de Franz Kafka a Samuel Beckett, as páginas de maravilhosos romances e os palcos de grandes teatros exploraram e encenaram o abismo da solidão.
A cidade crua, a grande miragem urbana é o protagonista do século XX, cujas possibilidades são levadas ao limite por James Joyce. Finalmente, após a Segunda Guerra, Theodor Adorno constatou: depois de Auschwitz, já não faz mais sentido fazer poesia.
A diferença percebida na época contemporânea em relação ao passado recente não é, portanto, o sentimento em si da catástrofe e da perda do futuro (no máximo, posso me enxergar nas próximas 24 horas), mas sim a fragilidade cada vez maior dos laços sociais. A vida pública encolhe, a privatização da vida se expande. O cidadão cede lugar ao consumidor. Eis tudo.
Impossível determinar o limite desse processo insano.
Mas ele só será interrompido se uma outra lógica recolocar a necessidade de ampliar o espaço público e afirmar a prioridade dos valores solidários sobre os individualistas.
A alternativa será o tsunami social.
História e Cultura n° 1 Ano 3
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