No início de 2002, ainda sob o impacto dos atentados de 11 de setembro de 2001 e já em plena campanha militar no Afeganistão, o presidente George Bush, em discurso à nação, definiu as linhas mestras da política externa americana. Naquele discurso, a Doutrina Bush adquiriu contornos definitivos.
Bush delineou a noção de “guerra preventiva”, mandando um recado ao mundo: seu país afirmava o direito de atacar qualquer outro que representasse um perigo à segurança dos Estados Unidos. Ali anunciava-se a invasão do Iraque, deflagrada em 2003.O discurso da “guerra ao terror” logo tornou-se um álibi político universal. Rússia, China e Israel, cada um a seu modo, “pegaram carona” na Doutrina Bush para justificar a repressão a grupos rebeldes e legitimar, em nome do combate ao terrorismo, a violação sistemática de princípios democráticos e dos direitos humanos. A ofensiva israelense no Líbano participa deste contexto internacional. Suas raízes encontram-se no ano 2000, quando eclodiu uma nova revolta palestina (a “segunda intifada”) e, simultaneamente, Israel decidiu retirar suas tropas instaladas no sul do Líbano.
A “segunda intifada”, marcada por atentados suicidas perpetrados por palestinos dos grupos Hamas e Jihad Islâmica, só arrefeceu em 2004. Cada ação praticada por esses grupos era seguida de violentas represálias israelenses, que também atingiam civis.
Foi nesse período que o ex- primeiro ministro de Israel, Ariel Sharon, estruturou a estratégia da “paz imposta”. O Plano Sharon previa a definição unilateral das fronteiras, a anexação definitiva de parcelas da Cisjordânia, a integração total de Jerusalém ao território israelense e a separação física, por meio de um extenso muro, entre Israel e o território fragmentário sob administração da Autoridade Nacional Palestina (ANP).
O Plano Sharon baseava-se na idéia da submissão da ANP, cuja função seria a de garantir estabilidade política nos territórios ocupados de Gaza e da Cisjordânia. As eleições palestinas de janeiro puseram por terra a estratégia. Os palestinos votaram contra os sucessores de Yasser Arafat, falecido em 2004, e deram a vitória ao Hamas, rejeitando assim o plano de Sharon.
Criado em 1982, na esteira da Revolução Islâmica iraniana, o Hezbollah tornou-se rapidamente uma força política e militar implantada nas áreas de populações xiitas libanesas do Vale do Bekaa, dos subúrbios de Beirute e do sul do país. Desde o início, o grupo prega a destruição do Estado de Israel.
Os Estados Unidos e Israel qualificam o Hezbollah como “organização terrorista”.
Mas, no Líbano, ele é considerado um partido popular xiita e, ainda, uma força militar de defesa nacional. Durante anos, as milícias do Hezbollah fustigaram as tropas de Israel no sul do Líbano. A retirada israelense de 2000 ampliou o apoio popular à organização, que reuniu 500 mil manifestantes e recebeu 15% dos votos nas eleições libanesas de 2005. Depois disso, passou a participar, como força minoritária, do governo libanês de união nacional.
A nova guerra libanesa começou, em julho, com um acidente prosaico, para padrões da região: a morte de oito soldados de Israel e a captura de outros dois pelo Hezbollah. Israel reagiu bombardeando o Líbano, atingindo não só áreas de ação do Hezbollah mas também bairros xiitas de Beirute, povoados e infra-estruturas de transportes e energia.
As forças israelenses retornaram ao sul do Líbano, onde enfrentaram as milícias irregulares da organização xiita. Durante cerca de um mês, até a entrada em vigor de um cessar-fogo patrocinado pela ONU, mais de mil civis libaneses foram mortos. Praticamente um quarto da população do país foi transformada em refugiados internos.
No entanto, pela primeira vez desde sua fundação, em 1948, Israel transformou-se em alvo sistemático de foguetes do Hezbollah, abastecidos pela Síria e Irã que, ocasionaram a morte de mais de uma centena de israelenses.
Estabelecido o cessar-fogo, os adversários fizeram suas contas. O governo israelense proclamou vitória, sob o argumento de que teria enfraquecido o Hezbollah, reduzindo, em pelo menos 80% sua capacidade militar e proporcionado uma nova correlação de forças no sul libanês, que será patrulhado pelo exército do país e por forças da ONU. O Hezbollah também cantou vitória e, para provar que continua vivo e forte, lançou nada menos que 246 foguetes contra Israel no último dia do conflito.
No mundo árabe-muçulmano, difundiu-se a percepção de que Israel não é invencível, pelo menos em confrontos não convencionais, quando suas tropas são obrigadas a combater milícias irregulares. Aparentemente, os militantes do Hezbollah tiveram êxito onde, no passado, os exércitos dos países árabes e os homens-bomba palestinos falharam.
Não é realista negar que Israel sofreu clara derrota política, uma conclusão extraída inclusive por órgãos conservadores como a revista The Economist. A meta proclamada pelo governo israelense, na hora do início dos bombardeios, era eliminar o Hezbollah como força militar e redesenhar a política libanesa. No lugar disso, a organização xiita firmou-se como pilar político e militar da defesa do Líbano e não será desarmada sem um acordo regional amplo entre os árabes e Israel.
O Plano Sharon recebeu um golpe mortal. Ninguém mais acredita que uma paz imposta, com fronteiras traçadas de modo unilateral, possa estabilizar a região ou garantir a segurança de Israel. De quebra, o muro israelense foi desmoralizado pois, se ele pode reduzir o número de atentados suicidas, não tem nenhum efeito contra foguetes como os usados pelo Hezbollah ou mesmo como os rudimentares foguetes lançados em menor escala pelo Hamas.
Mais uma vez, só há uma lição razoável: nada substitui um acordo de paz. Contudo, em Israel, fala-se em novas guerras, agora “decisivas”. E, entre palestinos e xiitas libaneses, fala-se em extirpar Israel do mapa do Oriente Médio. Política e razão nem sempre andam juntas.
Boletim Mundo n° 5 Ano 14
Nenhum comentário:
Postar um comentário