A Nicarágua, que combina o paradoxo de ser o maior e mais pobre país da América Central, traz tipos variados de cicatrizes.
Do ponto de vista geográfico, o país, ligeiramente maior do que Santa Catarina, é cortado por várias falhas geológicas e contém vulcões ativos que tornam a possibilidade de terremotos e outros desastres naturais bastante plausível. Um dos maiores exemplos deste potencial destrutivo é a própria capital, Manágua, que em 1951 e 1972 foi abalada por grandes terremotos que destruíram partes significativas da cidade. Além disso, os diferentes solos e condições climáticas causados pelas diferenças de altitude e influência de dois oceanos com temperaturas relativas bastante distintas tornam a prática da agricultura um desafio. A alta concentração da propriedade da terra nas áreas costeiras agrava os efeitos das características naturais sobre os camponeses que ali vivem.Mas o país contém belezas naturais sem par, como o Lago Nicarágua e praias paradisíacas banhadas pelos oceanos Pacífico e Atlântico. Na cidade de Masaya é possível visitar um vulcão ativo que leva o nome da cidade, também conhecido como a “Boca do Inferno”. Este nome foi dado ao local no século XVI, e na boca do vulcão está colocada a Cruz de Bobadilla em homenagem ao padre espanhol Francisco Bobadilla. Ele acreditava que o odor de enxofre que ainda hoje inebria seus visitantes era um sinal da entrada do Inferno.
A Nicarágua apresenta baixa densidade demográfica, com população girando em torno de 4 milhões de pessoas. As raízes desta baixa densidade estão na história colonial, quando os conquistadores espanhóis praticamente dizimaram as populações nativas. A Nicarágua tampouco foi afetada pela chegada de grande número de escravos africanos, e a sua população hoje é conformada por um número expressivo de mestiços dos povos indígenas que originalmente habitavam seu território e dos colonizadores espanhóis. A presença espanhola pode ser mais bem visualizada nas cidades de Granada e León, onde a arquitetura ainda reflete o traçado colonial, com um sem número de igrejas e casarões que evidenciam a ostentação que marcou o domínio europeu.
A atual configuração social e econômica da Nicarágua também está ligada aos interesses de navegação através do Lago Nicarágua (ou Cocibolca, nome dado pelos habitantes pré-colombianos e que significa “lugar da grande serpente”), que afloraram na segunda metade do século XIX. As facilidades da ligação entre o Pacífico e Atlântico despertaram o interesse dos Estados Unidos, que se preparavam para assumir a condição de principal potência econômica e militar do mundo.
Em função desse interesse, que não diminuiu mesmo após a construção do Canal do Panamá, o poder de Washington tornou-se presença marcante na Nicarágua, seja pela ocupação militar direta, entre 1910 e 1933, ou pela relação simbiótica com as elites locais.
Esta relação foi especialmente evidente durante a “dinastia Somoza”, de ditadores que controlaram o país por quase meio século, até a Revolução Sandinista de 1979.
A história recente da Nicarágua incluiu ainda o envolvimento direto americano no processo contra-revolucionário, por meio do financiamento das guerrilhas que combateram o regime esquerdista da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).
O conflito, sangrento, desenrolou-se entre 1979 e 1990 e custou a vida de mais de 50 mil nicaragüenses. A avassaladora presença é hoje simbolizada pela construção de um novo e suntuoso edifício destinado a abrigar a embaixada americana, na qual trabalham freneticamente 300 operários trazidos dos Estados Unidos.
O período pós-sandinista coincidiu com a adoção irrestrita do receituário ultra liberal. A privatização de estatais e a reversão do processo de reforma agrária do período revolucionário jogaram mais da metade da mão-de-obra ativa na informalidade. Para piorar, o furacão Mitch, que varreu o país em 1998, trouxe não apenas mais morte e destruição mas uma elevação sem precedentes nos níveis de corrupção governamental, à sombra da qual surgiu uma nova classe de capitalistas ligada à construção de moradias de luxo. O fenômeno concentrou ainda mais a renda e gerou um espaço urbano que superpõe na paisagem mansões luxuosas e barracos de papelão, especialmente na região sul de Manágua.
A adoção irrestrita do modelo ultra liberal atraiu as chamadas maquiladoras, principalmente no setor têxtil, nas quais operários trabalham por salários de 30 centavos de dólar por hora, em condições que nada ficam a dever às da Revolução Industrial inglesa. No setor agrícola, a participação da Nicarágua no Acordo de Livre Comércio da América Central (Cafta) estimulou a especialização nas exportações de carne bovina e açúcar, que favorecem a consolidação de grandes propriedades rurais.
Hoje, apenas na Costa Rica, se encontram mais de 500 mil imigrantes nicaragüenses, a maioria ilegais. Como fruto do êxodo em grande escala, as remessas de recursos financeiros dos imigrantes para seus familiares tornaram-se um elemento crucial para o equilíbrio das contas externas nicaragüense.
Apesar de tudo, viajar pela Nicarágua é uma experiência inesquecível, especialmente devido à gentileza e delicadeza com que as pessoas tratam os visitantes, e ao bom humor com que enfrentam o cotidiano.
As crianças que pedem umas poucas córdobas (a moeda oficial do país) nas esquinas, o fazem de forma educada e altiva.
A atmosfera nos mercados e bares é marcada pela mistura de vozes altas e música latino-americana e reggaeton (a mais nova sensação nas discotecas americanas).
Não é raro ouvir cantores brasileiros debulhando suas canções no melhor portunhol. Nesse quesito, Roberto Carlos ainda é o Rei. E, um toque marcante: a maioria das cidades abriga estátuas, placas e peças da guerra contra a “dinastia Somoza” que, surpreendentemente, escapam quase intactas às pichações.
Para quem quiser saborear um pouco da ironia com que o povo nicaragüense encara seu cotidiano, na região central de Manágua pode-se visitar o Parque Histórico Nacional Lomas de Tiscapa. Ali, uma estátua gigante do herói popular Augusto César Sandino, que combateu a ocupação americana da primeira metade do século XX, foi colocada sobre as ruínas do antigo Palácio Presidencial. Nesse palácio, os Somoza recebiam seus convidados no andar térreo para jantares nababescos, enquanto torturavam prisioneiros políticos no subterrâneo. De um dos pontos mais altos de Manágua, os visitantes pode contemplar uma cidade bela, ainda que fraturada, e também tirar fotos ao lado do tanque Araceli, com o qual os sandinistas começaram a insurreição final contra Anastácio Somoza, na cidade de León.
Boletim Mundo n° 3 Ano 14
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