Um paradoxo assola o Oriente Médio: o paradoxo democrático. A surpreendente e esmagadora vitória do grupo fundamentalista Hamas (acrônimo, em árabe, de Movimento de Resistência Islâmica) nas eleições para o Parlamento palestino, em janeiro, foi o mais contundente golpe na política americana de “exportar” a democracia para o Oriente Médio como forma de estabilizar a região e combater o terrorismo.
Antes da vitória do Hamas, o fracasso dessa faceta da Doutrina Bush já era evidente em toda a região. Foi o caso do Iraque, que os Estados Unidos invadiram em 2003 para derrubar o regime de Saddam Hussein. Desde então, a guerra civil engolfou o país, transformando-o em centro de treinamento de terroristas da Al-Qaeda, que se aliaram à insurgência sunita local em luta contra a ocupação. Para piorar, as eleições de dezembro consagraram os setores xiitas mais comprometidos com a implantação de um Estado islâmico.Na Arábia Saudita, que sob pressão adotou um arremedo quase risível de abertura política permitindo eleições municipais, saíram fortalecidos os wahabitas, a seita puritana que representa o setor mais duro da teocracia saudita. No Líbano, o grupo terrorista Hezbollah, representando a comunidade xiita, ganhou força política no Parlamento. Finalmente, na ditadura secular do Egito, reformas limitadas levaram a Irmandade Muçulmana – a fonte histórica do fundamentalismo islâmico contemporâneo – a conquistar 88 das 150 cadeiras no Parlamento.
Mas considerações geopolíticas certamente pesaram pouco nos motivos que levaram a maioria do eleitorado palestino a depositar suas esperanças no grupo responsável pelos mais sangrentos atentados terroristas em Israel. Cansados de serem liderados por uma organização inepta e corrupta até o último fio de cabelo – a Fatah de Yasser Arafat –, os palestinos resolveram dar uma chance aos incorruptíveis do Hamas.
O Hamas tem uma história curiosa. Suas raízes remontam aos anos 70, com a formação da Irmandade Muçulmana na Faixa de Gaza, sob os auspícios da Arábia Saudita e o olhar benevolente de Israel, que buscava uma alternativa religiosa e filantrópica ao nacionalismo da OLP. Mas o Hamas saiu do ovo em 1988, entre as pedras da primeira intifada (revolta palestina), sob uma configuração muito mais radical, defendendo a destruição de Israel e a formação de um Estado islâmico em toda a Palestina. O grupo se opôs violentamente aos acordos de Oslo de 1993, que permitiram o surgimento da Autoridade Nacional Palestina (ANP), lançando mão de sangrentos atentados suicidas contra civis israelenses ao longo dos últimos dez anos.
Contudo, ao mesmo tempo, o Hamas nunca abandonou sua vocação filantrópica original e, com fundos recebidos do Irã, de palestinos no exílio e de outros Estados árabes, sustenta uma extensa rede de proteção social aos palestinos em Gaza e na Cisjordânia, como hospitais, creches e escolas. Nos últimos tempos, os palestinos puderam avaliar algumas administrações municipais conquistadas pelo Hamas, um vivo contraste com as depravadas prefeituras dirigidas pelos herdeiros de Arafat do grupo Fatah, que dirigia a ANP.
Apesar do espanto inicial e da tentativa de punir o “desatino” dos palestinos com o boicote econômico, os Estados Unidos, a União Européia e mesmo Israel se convenceram de que não há outra alternativa senão engolir a seco a vitória do Hamas e esperar para ver. A opção de destruir a ANP não faz parte do cardápio político das correntes políticas dominantes em Israel, pois a conseqüência seria o retorno das tropas israelenses ao conjunto dos territórios ocupados e a retomada da repressão direta aos palestinos, num quadro de radicalização e conflitos sangrentos.
Os americanos, os europeus e os israelenses definiram uma estratégia transitória.
Eles pressionam por algum tipo de coalizão entre o Hamas e o Fatah e, ao mesmo tempo, exigem que o Fatah reconheça o Estado de Israel e renuncie à violência.
No horizonte de curto prazo, nada disso acontecerá. O Hamas, eleito pela maioria esmagadora dos palestinos, cometeria suicídio político se desistisse, a troco de nada, das suas posições tradicionais. Mas, e num horizonte mais largo?
As eleições parlamentares de março em Israel provavelmente darão vitória ao Kadima, o novo partido dissidência formado por Ariel Sharon, que agrupou uma vasta dissidência do Likud e alguns líderes históricos do Partido Trabalhista como, principalmente, Shimon Peres. O Kadima, sob o comando de Ehud Olmert, segue a linha definida por Sharon: uma “paz sem parceiros”, ou seja, a definição unilateral das fronteiras definitivas na Palestina e a separação física entre Israel e os palestinos.
Como responderá o Hamas aos fatos consumados impostos por essa estratégia?
Escolherá a via do confronto, pela retomada de ações terroristas ou pela organização da resistência popular armada?
O conceituado jornal israelense Haaretz preferiu conjeturar em outra direção.
Ele sugeriu que o Hamas poderia repetir a trajetória do Likud – uma organização com passado terrorista e uma plataforma radical, de anexação de toda a Terra Santa, que, pouco depois de chegar ao poder, em 1977, fez a paz com o Egito, então um dos piores inimigos de Israel. Paz entre Israel e o Hamas? Quem viver verá.
O certo é que a Doutrina Bush vai de fracasso em fracasso. A visão de um Iraque estável, pró-americano, e de uma Palestina sob controle dos confiáveis herdeiros de Arafat dissolveu-se sob o impacto do voto de iraquianos e palestinos. Além disso, com a vitória do Hamas, a Palestina voltou a ocupar o lugar central do tabuleiro geopolítico do Oriente Médio. É tudo o que Washington não queria.
Boletim Mundo n° 1 Ano 14
Nenhum comentário:
Postar um comentário