(CONSELHO NACIONAL DE INTELIGÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS, MAPPING THE GLOBAL FUTURE, 2004)
A linguagem da globalização ganhou um novo termo: BRIC, quase “tijolo”, em inglês, montado pelas iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China. O termo veicula uma tese. O crescimento econômico dos países-baleia ativa novos fluxos internacionais e reconfigura a paisagem mundial.
Num futuro próximo, tão próximo que é quase presente, os pólos econômicos tradicionais – os Estados Unidos, a União Européia e o Japão – enfrentarão os desafios postos pelas grandes economias emergentes da Ásia, América do Sul e Europa Oriental. Há verdade nessa tese?A China não é uma profecia, mas uma realidade. Seu PIB perde para os dos Estados Unidos e do Japão, segundo o método de cálculo tradicional (dólares correntes), mas já ocupa o segundo posto se a opção recair no método do Banco Mundial (paridade do poder de compra). A potência da Ásia oriental é o terceiro exportador mundial e o segundo exportador de manufaturados, atrás apenas da União Européia.
A Rússia é quase um desastre industrial, apesar do seu imenso potencial científico e tecnológico. Mas o seu território de dimensões continentais guarda quantidades imensas de variados recursos naturais que desempenham funções estratégicas. As exportações de petróleo, gás natural e minérios metálicos, controladas por empresas monopolistas cada vez mais subordinadas às diretrizes do Estado, funcionam como instrumentos cruciais na geopolítica de Moscou.
O Brasil, como a Rússia, mergulha no oceano da economia global a partir de um trampolim constituído por recursos naturais: terras férteis, água abundante, luz solar e calor. São, no fim das contas, esses elementos os responsáveis pela expansão acelerada das exportações agrícolas brasileiras e pelo boom do agronegócio. Os produtos agropecuários do país só não inundam os maiores mercados consumidores do mundo em virtude do arsenal variado de subsídios e medidas protecionistas que cercam os agricultores europeus, americanos e japoneses.
A Índia não é um exportador destacado de produtos básicos nem de manufaturados.
Em compensação, tornou-se um “exportador” de serviços: o trabalho qualificado e barato de seus engenheiros de sistemas e softwares, que gravitam em torno das grandes empresas globais de informática, e de suas atendentes de call- centers, que desempenham funções vitais para conglomerados americanos, europeus e australianos.
Na linguagem do poderio econômico bruto – ou seja, do PIB – os BRIC já configuram uma nova paisagem global, menos centrada nas potências tradicionais do “Norte”. Isso tem implicações políticas e militares. As candidaturas da Índia e do Brasil a cadeiras de membros permanentes no Conselho de Segurança da ONU refletem fenômenos estruturais de longo prazo. A Rússia continua a ser uma grande potência militar. A China moderniza suas forças armadas, em especial suas tecnologias de mísseis e sua força aérea, e logo terá capacidades de projeção de poder para além do seu próprio entorno imediato.
A Índia acaba de ser reconhecida como integrante do clube seleto das potências nucleares.
O impacto da ascensão dos BRIC se faz sentir na Organização Mundial de Comércio (OMC). Na Rodada Uruguai de negociações comerciais, que se concluiu em 1994, os Estados Unidos e a União Européia articularam em bases puramente bilaterais o esboço do acordo final, ignorando os interesses dos países do “Sul”.
Atualmente, o impasse que paralisa a Rodada Doha provoca frenéticas articulações que abrangem, entre os atores indispensáveis, a China, o Brasil e a Índia.
O termo BRIC descreve a emergência de um sistema internacional bastante diferente do que foi o sistema bipolar da Guerra Fria. Mas ele se inscreve num discurso ideológico, que deliberadamente deixa na sombra as condições que cercam a ascensão das novas potências do “Sul”. A Alemanha unificada do século XIX e os Estados Unidos do início do século XX, mencionados sempre como antecessores históricos das atuais potências emergentes, estabeleceram economias baseadas na pujança dos mercados internos e na acumulação nacional de capitais.
Não é o caso dos BRIC.
As exportações industriais de alta tecnologia da China derivam, sobretudo, dos investimentos estrangeiros americanos, japoneses, europeus e asiáticos (Taiwan e Coréia do Sul, principalmente). Das exportações chinesas de máquinas industriais, 62% são realizadas por empresas de capital totalmente estrangeiro e 15%, de joint-ventures entre capitais estrangeiros e estatais. Nas exportações de computadores e componentes, essas parcelas são de 75% e 15%, respectivamente. E, nas de equipamentos eletrônicos e de telecomunicações, de 43% e 28%.
A China é, antes de mais nada, uma plataforma exportadora da globalização. A Índia ocupa um lugar semelhante, mas no campo dos serviços. O Brasil e a Rússia conhecem processos, diferentes entre si, de perda de competitividade industrial e especialização nas exportações de produtos básicos.
É fácil exagerar o poder dos BRIC no sistema internacional. Entre os quatro, apenas a China, em função do seu poderio militar, da magnitude do mercado interno potencial e do conteúdo de suas exportações, emerge como potência global. Índia e Brasil continuam a figurar, essencialmente, como potências regionais. A Rússia, apesar do seu arsenal nuclear, consolida-se como periferia oriental da Europa e luta para preservar sua hegemonia no quadro estreito da Comunidade de Estados Independentes (CEI). Os BRIC são um termo sagaz, mas uma pobre explicação sobre o futuro do sistema internacional.
Boletim Mundo n° 2 Ano 14
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