domingo, 18 de dezembro de 2011

VIVER É MUITO PERIGOSO

José Arbex Jr.

Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.” Assim falava Riobaldo, narrador de Grande sertão: veredas, romance de João Guimarães Rosa publicado há exatos 50 anos, em maio de 1956, para se tornar uma das grandes narrativas épicas da literatura brasileira e universal.
O cenário é o sertão ao norte de Minas Gerais, incluindo, com central importância, o rio São Francisco; os personagens são os seus habitantes: jagunços, prostitutas, gente simples, fazendeiros, heróis e bandidos. O sertão é recriado pela linguagem. Por meio do narrador Riobaldo, Rosa reinventa o vernáculo: os brasileirismos e neologismos dão uma nova dimensão ao idioma português, como que forçando a sua adaptação ao cenário local. O idioma torna-se uma espécie de esplêndida “fotografia” do relevo psicológico dos personagens, algo jamais atingido pela mais completa reportagem jornalística.
Rosa, aliás, é um completo jornalista do sertão. O romance é composto a partir da narrativa das memórias de Riobaldo, relatadas ao longo de três dias a um “senhor” indeterminado. Entre guerras, brigas e inquietações metafísicas – por exemplo, aquelas que indagam o destino, o sentido da vida ou a existência do demônio -, desenvolve-se o amor proibido entre Riobaldo e o jagunço Reinaldo, cujo nome real é Diadorim, cuja verdadeira identidade, revelada após a morte, é Maria Deodorina.
A narrativa de Riobaldo não surgiu da imaginação arbitrária de Rosa. Ao contrário, o autor fez uma vasta pesquisa local. Conviveu com os sertanejos, anotando compulsivamente tudo: estórias da vida cotidiana, superstições, hábitos culturais e religiosos, dados da flora e da fauna, impressões pessoais, anedotas e canções. Preencheu, freneticamente, pelo menos 50 cadernos. Manuel Narde, o Manuelzão, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim, conta que durante os dias que passou no sertão, Rosa “perguntava mais que padre”.
O autor, médico de formação, era apaixonado por idiomas, e isso ajuda a explicar a extraordinária competência e profundidade com que compôs os personagens e revitalizou o português brasileiro. Em entrevista concedida a uma prima, citada por Armando Nogueira Júnior (em Projeto Releituras: http://www.releituras.com/ guimarosa_bio.asp), Rosa afirma: “Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal.
E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém,  estudando-se por divertimento, gosto e distração.”
Na parte inicial do romance, a narrativa de Riobaldo é mais ou menos caótica. Os fatos se atropelam, como peças de um mosaico ainda não conectadas por uma lógica coerente. Parece que a necessidade de  verbalizar as dúvidas, angústias e reflexões provoca um jorro inicial de palavras. A partir de um certo momento, as memórias começam a se organizar, mais ou menos como se o rio, após passar a fase das corredeiras, encontrasse um leito mais uniforme. Com freqüência, Riobaldo recorre ao compadre Quelemém de Góis.
“Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”, diz Riobaldo, assim expondo um fato muito conhecido por aqueles que têm a mínima familiaridade com o processo psicanalítico. Na beira do São Francisco, Riobaldo conhece Reinaldo – Diadorim – Deodorina.
E a partir daí a narrativa decola.
Muito já se escreveu e muito se escreverá ainda sobre Grande sertão: veredas. Desde que o livro foi lançado, provocou inúmeras polêmicas e debates apaixonados. É uma demonstração da genialidade do autor, que transformou o sertão mineiro em cenário universal do “homem humano”, cuja travessia – a vida, um ofício “muito perigoso” – é a única coisa que realmente importa. E o resto é o diabo, mas o diabo não há.

História e Cultura n° 3 Ano 2

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