Para se aproximar da pista, o avião descreve uma longa curva sobre o Mar do Caribe até entrar na reta final. À medida que a aeronave vai descendo, vê-se claramente o maciço montanhoso do estado Vargas, de um lado, e o verde-azulado sem fim, de outro. O aeroporto internacional Simon Bolívar, no bairro de Maiquetía, é mais um que, quanto mais sofre reformas e se moderniza, mais igual fica a incontáveis terminais aéreos espalhados pelo mundo.
A diferença é que estamos na Venezuela, no primeiro semestre de 2006. Entre o aeroporto e Caracas, 40 quilômetros adiante, há uma pedra no caminho. Ou melhor: um viaduto quebrado. É uma estrutura gigantesca, erguida em 1953. Liga dois pontos de uma moderna autopista que se embrenha serra adentro, até a capital.O tempo de vida útil se esgotou e rachaduras criaram um desnível de até 40 centímetros em suas placas. A única alternativa é uma sinuosa via que corta o imenso bairro popular de Cátia, convertendo uma jornada de 30 minutos em um martírio de três horas.
Mais do que qualquer inflamado líder oposicionista, este é hoje o principal problema da administração de Hugo Chávez.
Ele expõe uma contradição num governo que tenta encontrar uma rota alternativa às imposições do mercado internacional, às quais se submeteu a ampla maioria dos governos, tanto de esquerda quanto de direita, na América Latina.
Logo que se elegeu, em dezembro de 1998, Chávez também encontrou as pontes interrompidas, quando avaliou ser possível contrariar os interesses das elites de seu país, associadas ao poder da finança global.
O grande nó político venezuelano, desde fins da década de 1920, é a disputa para ver quem manda no petróleo. Quinto maior produtor do mundo e segundo maior fornecedor aos Estados Unidos, o país tem um papel estratégico no mercado mundial de energia. Em torno do óleo negro se digladiaram facções e interesses variados, pondo e depondo presidentes.
A PDVSA (Petróleo de Venezuela S.A.), estatal do setor, é, desde sua criação em 1976, um Estado dentro do Estado. Responsável por 40% do PIB e 70% da pauta de exportações, a empresa sempre teve presidentes com mais poder do que o chefe do executivo federal.
Sob Chávez, o cenário não é diferente.
O golpe de abril de 2002, que o retirou do palácio por 72 horas, tinha como uma de suas razões a nomeação da direção da empresa. A paralisação empresarial de dois meses, entre dezembro de 2002 e fevereiro de 2003, aconteceu, centralmente, nos negócios do petróleo. E é o ouro negro que financia todas as ações do governo na área social, bem como é a baliza de sua atuação internacional. As chamadas missões socais – de saúde, de educação e de abastecimento, entre outras – são bancadas pela renda do setor. É através dos negócios de petróleo e gás que Chávez impulsiona sua diplomacia regional e seu discurso acidamente antiimperialista.
Agora, Chávez propõe criar a Petrosur, holding das estatais do continente, construir um gasoduto da Venezuela ao sul da Argentina, abastecendo, além destes, Brasil e Uruguai, e vale-se do poder petrolífero para confrontar os Estados Unidos na região. Depois de anos de disputa, o governo controla plenamente a PDVSA.
A Venezuela vive um período invejável de recuperação econômica, especialmente se seus índices forem comparados às medíocres taxas de crescimento brasileiras, estacionadas há uma década em médias anuais de cerca de 2,5%. Desde 2004, o país caribenho cresce a índices acima de 9% ao ano. A mola propulsora desse desempenho é a alta dos preços internacionais de seu principal produto. Com o barril de petróleo cotado a cerca de US$ 60 (contra US$ 22 a 28 no início da década), o ingresso de dinheiro tira argumentos daqueles que acusam Chávez de promover um desastre econômico.
Essa alta não dá mostras de perder fôlego no curto ou no médio prazo. Ela é motivada pela entrada em cena da China como grande consumidora .
Apesar de não ter um partido ou força organizada de maior envergadura que lhe dê sustentação, Chávez conta com apoio popular sólido. Após todos os enfrentamentos que atravessou, cerca de 70% dos venezuelanos aprovam sua gestão. Sua ousadia o transformou numa liderança continental e referência para a esquerda mundial. Após ser aprovado no referendo revogatório, em agosto de 2004, no qual o eleitorado manifestou apoio à sua permanência no poder, os conflitos com a oposição perderam o vigor. Desorganizadas e desmoralizadas por torrentes de equívocos, elas correm o risco de verem sua legitimidade tornar-se ainda mais rarefeita.
Em dezembro próximo a Venezuela terá eleições presidenciais. Chávez apresenta-se como favorito. Mas sua capacidade de derrotar a oposição esbarra em questões aparentemente banais para uma administração pública, como manter a infra-estrutura em boas condições de uso.
Hábil para resolver conflitos políticos, o chavismo ainda não mostrou ser capaz de realizar administrações competentes. A alegação governamental é a de que as turbulências enfrentadas desviaram todas as energias para os embates políticos. Há também, no país, uma carência quase crônica de administradores capacitados para gerir a máquina pública.
Até aqui, o projeto de Chávez busca fortalecer o Estado e seu caráter público, ao contrário do que prega o chamado neoliberalismo, que vê no mercado soluções para tudo. Mas viadutos quebrados, acúmulo de lixo e má iluminação nas ruas são um empecilho a ser superado. Mesmo porque as vias obstruídas não são apenas metáforas. Interrompem estradas, emperram a circulação de mercadorias, causam danos à economia e irritam a população.
Boletim Mundo n° 2 Ano 14
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