sábado, 31 de dezembro de 2011

O SACO SEM FUNDO DO POPULISMO

Nomear é um ato de poder. Muitas vezes, é também um doce conluio entre a ignorância e a preguiça. Diante de um novo fenômeno, que desafia o analista, há sempre a solução de enquadrá-lo num rótulo antigo.
Populistas! É assim que grande parte dos cientistas políticos denominam os líderes daquilo que, nos Estados Unidos, é interpretado como um “eixo do mal sul americano”: Hugo Chávez, da Venezuela, Evo Morales, da Bolívia e Néstor Kirchner, da Argentina. De quebra, Ollanta Humala, o candidato presidencial derrotado no Peru, é lançado junto no saco sem fundo do populismo.
O procedimento, vez ou outra, envergonha os próprios operadores. Nesse caso, o remédio milagroso é acrescentar o prefixo “neo”, que funciona como um elixir da vida eterna. Neo-populistas! No “neo”, descarrega-se todas as partes da realidade que não se encaixam no conceito.
Nos manuais de ciência política, populismo é um conceito de tal amplitude que aceita quase tudo. Populistas seriam os líderes que reconhecem uma relação de dominação, ou opressão, do povo por uma elite tradicional e que, na tentativa de representar as aspirações populares, consideram necessária uma ampla intervenção do Estado voltada para o benefício do povo. Obviamente, nessa piscina teórica cabem lideranças da Roma antiga, políticos de esquerda e direita dos Estados Unidos e governantes latino-americanos de meados do século XX. Claro: o conceito que descreve quase tudo não lança luz sobre nenhum fenômeno específico.
Os historiadores políticos da América Latina drenaram a piscina teórica, em busca de um conceito mais sofisticado e, principalmente, mais útil. Eles registraram os paralelos entre os regimes de Getúlio Vargas no Brasil (1930-45 e 1950-54), Juan Domingo Perón na Argentina (1946-55) e Lázaro Cárdenas no México (1934-40) e observaram o surgimento da Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra), o partido reformista do peruano Haya de la Torre. Notaram que o populismo latino-americano está associado à transformação de economias agro-exportadoras em economias industriais e de sociedades agrárias em sociedades urbanas. E concluíram que o populismo é uma adaptação do sistema político ao impulso de modernização industrial, durante a transição de uma sociedade de massas para uma sociedade de classes.
Os líderes populistas latino-americanos são figuras que conservam ou restauram a ordem social, em meio ao turbilhão da mudança. Eles discursam para o povo de dia e confabulam com os poderosos à noite. Prendem as organizações populares na malha dos órgãos de Estado, concedendo direitos e distribuindo privilégios. Promovem reformas verdadeiras, que servem também para inocular na sociedade uma vacina contra a revolução. O salário mínimo, os direitos trabalhistas, a legislação previdenciária são obras do populismo, tanto quanto os sindicatos dirigidos por burocratas corrompidos (os “pelegos”) e controlados pelo Estado.
São populistas Chávez, Morales, Kirchner e Humala?
Para enfiar esses líderes no saco do populismo é preciso, antes de tudo, destruir o sentido histórico do conceito. O “momento populista” corresponde ao processo de arranque industrial por substituição de importações na América Latina. Essa é, essencialmente, uma transição incompleta, mas já encerrada. A Venezuela de Chávez e a Bolívia de Morales não podem, no quadro da globalização, atrair investimentos externos diversificados por meio de instrumentos de proteção de seus mercados internos. A Argentina enfrenta um processo inverso, de desindustrialização. Os líderes atuais chegaram ao poder na vaga de reação dos eleitorados às políticas de abertura econômica dos anos 90. A história não se repete, nem mesmo como farsa.
O estilo da política populista tem como traço marcante a relação carismática do líder com a massa popular. Essa relação produziu grandes partidos burocráticos e populares. No México, Cárdenas criou, a partir de uma organização já existente, o Partido da Revolução Mexicana (PRM), embrião do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país até 2000. Na Argentina, Perón fundou o Partido Justicialista (peronista), atualmente liderado por Kirchner. Vargas criou o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que hoje não passa de um balcão de pequenos negócios políticos.
Sob o ponto de vista das estruturas partidárias, apenas Kirchner poderia ser identificado com a política populista. Mesmo assim é preciso forçar a interpretação.
O Partido Justicialista mergulhou em crise durante o governo de Carlos Menem (1989-99) e sofre atualmente uma reinvenção.
Chávez e Morales são, certamente, líderes carismáticos.
Mas o chão que os sustenta não é o sistema político populista – são revoluções nacionalistas. Se esses processos seguirem em frente, conduzirão à “re-fundação” da Venezuela e da Bolívia. Se forem interrompidos, poderia se formar um ambiente de estabilidade populista. Isso é, hoje, apenas uma hipótese.
O peruano Ollanta Humala é um caso à parte. A sua plataforma política ultranacionalista baseia-se na “restauração” de um império inca imaginário, numa “fusão” com a Bolívia e na hostilidade ao Chile. Na campanha eleitoral peruana, ele recebeu os apoios de Chávez e Morales e, de modo oportunista, saudou a “revolução bolivariana” da Venezuela. Mas Humala é uma ave rara: aquilo que de mais próximo do fascismo existe na América Latina.
O saco sem fundo do populismo funciona como uma espessa cortina de fumaça.
O rótulo esconde as particularidades políticas de cada nação e produz a falsa imagem de um movimento geral homogêneo. Não diz quase nada de importante sobre o que acontece na Venezuela, na Bolívia e na Argentina. Mas evidencia a perplexidade dos analistas e da mídia.

Boletim Mundo n° 4 Ano 14

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