sábado, 31 de dezembro de 2011

ATAQUE AO LÍBANO REVELA OS LIMITES DO PODERIO MILITAR

Ze'ev Schiff e Milton Hatoum
Apresentamos, em seguida, duas visões sobre a guerra entre Israel e o grupo Hezbollah.
Ze’ev Schiff é judeu israelense e analista militar do jornal Haaretz, um dos mais importantes de seu país; Milton Hatoum é brasileiro, filho de libaneses, e um dos mais premiados escritores contemporâneos.

Um país, às vezes, tem de levar uma bofetada para despertar. Isso aconteceu com Israel, em 1973, na Guerra do Yom Kippur, quando morreram 2.600 pessoas, e também na Intifada de Al Aqsa, levante palestino iniciado em 2000, que causou mais de mil mortes. Agora, Israel levou outra bofetada durante a guerra contra o Hezbollah.
Também nos países árabes muita gente acredita que a guerra criou uma nova realidade. Na Síria, especula-se se chegou a hora de retomar pela força as Colinas de Golã (que Israel ocupa desde 1967). Para muitos no mundo árabe, os combates entre Israel e o Hezbollah fazem parte de um cenário mais amplo, que inclui a incapacidade dos Estados Unidos em eliminar a insurgência no Iraque. Os árabes estão vendo que o poderio militar não garante o sucesso. E há os que compreendem que o Irã – maior apoiador do Hezbollah – está disposto a intervir mais do que nunca nos assuntos árabes.
Felizmente para Israel, a guerra explodiu antes que o Irã adquirisse capacidade de ameaçar com armas nucleares. Teerã sabe que parte da infra-estrutura que criou para o Hezbollah foi destruída pela guerra, então precisa que as fronteiras com o Líbano permaneçam abertas. Isso permitiria que o Hezbollah fosse armado outra vez. O fato é que não haverá sentido na manutenção de uma força internacional no sul do Líbano se não houver garantia de que o Irã e a Síria não entregarão mais armas e foguetes ao Hezbollah.
Nada no atual desempenho do Hezbollah no sul do Líbano lembra a atuação do grupo em 1982, quando Israel invadiu o país pela primeira vez. O Hezbollah construiu um sistema de túneis que lembra o que os norte-vietnamitas fizeram, na Guerra do Vietnã (1960-75). Seus combatentes, que se escondem nos túneis, vêm à tona de tempos em tempos, para atacar as tropas israelenses e disparar foguetes contra Israel.
Só poderiam ser removidos com bombas incendiárias ou coisa semelhante. A rede de túneis foi planejada por assessores militares iranianos.
Nesta guerra, a tecnologia da Força Aérea e do Exército de Israel permitiu ataques mais precisos. Mas, a mídia internacional tem satélites capazes de fotografar e transmitir relatórios sobre quase qualquer movimento das forças israelenses.
Com essa ajuda, o Hezbollah vem ampliando muito seu trabalho de inteligência.
Pouco depois da retirada do Líbano, em maio de 2000, Israel descobriu que o Irã estava entregando ao Hezbollah grandes quantidades de foguetes e outros armamentos, além de treinar os guerrilheiros.
Logo se soube que a Síria também fornecia foguetes. Essas informações foram entregues aos ex-primeiros-ministros Ehud Barak e Ariel Sharon mas eles decidiram não lançar um ataque preventivo.
Barak, que liderou a retirada do Líbano, não queria mandar as tropas para lá outra vez. E Israel estava em meio a um novo levante palestino. Israel não empregou nenhuma medida defensiva.
Essa política foi adotada, acima de tudo, porque se temia que a comunidade internacional visse como injusto um ataque preventivo.
A conclusão é que uma pequena democracia como Israel não pode se permitir um ataque preventivo contra uma organização terrorista, não importa o quão perigosa ela seja. Essa prerrogativa está reservada às grandes potências e, geralmente, só depois de elas serem atacadas.
Depois do fracasso dos Estados Unidos contra os mísseis Scud, lançados do Iraque em 1991, alguns Estados árabes e o Irã aceleraram o desenvolvimento de mísseis terra-terra. Esse processo deverá ganhar ainda mais força, em função dos resultados dos ataques do Hezbollah contra Israel. E os palestinos, sem dúvida, também acentuarão os lançamentos de mísseis
Qassam e o contrabando de foguetes Katyusha para Gaza e a Cisjordânia. Israel precisa impedir pela força a continuidade desse festival de foguetes contra sua população. Com relação aos palestinos, são necessárias duas medidas: iniciar negociações políticas de fato e deixar claro que Israel reagirá duramente caso seus cidadãos sejam atingidos por foguetes.
É mais complicado resolver o problema dos foguetes e mísseis. Depois da guerra do Yom Kippur, Israel analisou o fracasso diante dos mísseis antiaéreos que abatiam seus aviões e foi capaz de solucionar o problema. O mesmo deve ser feito agora, com relação aos foguetes e mísseis terra-terra. Será um esforço grande e caro.
Ao mesmo tempo, Israel deve deixar claro que, se for atacado, fará seus inimigos pagarem um preço muito alto.
Israel não pode continuar ignorando, como fez até agora, que o poder militar tem limites. Especialmente quando exercido por um país pequeno.
Até julho de 1992, eu não conhecia Beirute,a cidade onde meu pai nasceu. Ele morava no Brasil desde a década de 1930 ese naturalizara brasileiro. Já era idoso, beirando os oitenta anos. Eu acabara de ganhar uma bolsa de literatura para passar uma temporada numa cidade francesa.
Então, meu pai quis saber se eu podia acompanhá-lo até o Líbano, que, na memória do meu pai, era acima de tudo Beirute, o lugar onde tantos Orientes e Ocidentes se encontram. A própria paisagem de Beirute é um privilégio da natureza, pois se debruça sobre as margens do Mediterrâneo e é envolta por montanhas em que a neve e cedros milenares são permanentes.
Há mais de dois mil anos evocado por viajantes, poetas e escritores, o Líbano era comparado a uma Suíça do Oriente: uma denominação bem ao gosto de orientalistas e visitantes deslumbrados com o único país da região que não conhece o deserto. Não por acaso, o nome do país aparece na mais bela e poética passagem do Antigo Testamento: o Cântico dos Cânticos.
Nessa viagem ao Líbano, fiquei impressionado com várias cidades que só conhecia por meio de imagens e descrições. Por exemplo, Baalbek (no vale do Bekaa, próxima da Síria) é um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo. Lá estão os templos romanos de Baco e Júpiter. Mas os vestígios da história vêm da antiqüíssima Fenícia, civilização que floresceu há mais de três mil anos e dominava grande parte do comércio do Mediterrâneo e do Norte da África. Há ruínas fenícias em Tiro, no sul, mas também no norte, sobretudo em Biblos, com suas tumbas e templos, além de um teatro romano e um imponente castelo cruzado do século 12. Em Trípoli, litoral norte, centenas de construções – mesquitas, escolas, mercados – e um centro antigo datam da época das Cruzadas e da Idade Média.
Conheci esse Líbano, histórico e turístico, mas conheci também uma parte do país devastado pela guerra civil (1975-1990) e pela ocupação israelense (1982-2000). Segundo o veterano pacifista israelense Uri Avnery, o recente ataque ao Líbano está relacionado com essa longa ocupação. Desde os primeiros dias dessa guerra, Avnery insistiu em afirmar que Israel estava cometendo um erro gravíssimo, pois não ia acabar com o Hezbollah. A captura de dois soldados não justifica a destruição de um país. Além disso, escaramuças na fronteira existem há seis anos, pois Israel ainda ocupa as fazendas libanesas da região de Shebaa.
Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter afirmou: “Não acho que Israel tenha qualquer justificativa legal ou moral para esse bombardeio maciço do Líbano. O que aconteceu foi que Israel está detendo quase 10 mil prisioneiros. Quando os militantes no Líbano ou em Gaza capturam um ou dois soldados, Israel vê isso como justificativa para um ataque à população civil do Líbano e Gaza. Não acho que se justifique, não.”
O bombardeio destruiu grande parte da infra-estrutura do país. Além disso, deixou um milhão de libaneses deslocados ou desabrigados. Mais de mil pessoas morreram, civis em sua imensa maioria, inclusive centenas de crianças. Do lado israelense, quase 200 pessoas morreram, a maioria soldados. Embora a destruição e o número de vítimas tenham sido muito maiores no Líbano, esse conflito foi também desastroso para os israelenses.
A captura de um soldado israelense também gerou os ataques à Gaza, na Palestina, onde já morreram mais de 160 palestinos, incluindo dezenas de jovens e crianças.
Depois dos ataques ao Líbano e a Gaza, que outra guerra será feita para combater o “terrorismo”, essa palavra que estigmatiza até as crianças palestinas que resistem à ocupação militar atirando pedras em tanques?
Ainda segundo Uri Avnery, “a terrível arrogância (das forças armadas) tornou-se parte do nosso caráter nacional”. E isso pode ser uma verdadeira catástrofe. Para Avnery, “o único caminho que leva à resolução do problema é a negociação, e a paz com palestinos, libaneses e sírios. E com o Hamas e o Hezbollah”. Avnery sabe que dificilmente haverá paz enquanto Israel não devolver as colinas de Golã para a Síria, as fazendas de Shebaa para o Líbano e a Cisjordânia para os palestinos.
Oito mil colonos judeus se retiraram de Gaza. Mas Israel continua a ocupar a Cisjordânia. Além disso, o governo israelense construiu um “muro de segurança” cujo traçado desrespeita a linha verde (demarcação entre Israel e os territórios palestinos), anterior à guerra de 1967. Foi depois dessa guerra que Israel ocupou Jerusalém Oriental, Gaza e Cisjordânia, e construiu assentamentos para colonos judeus em terras palestinas.
O muro já foi condenado por um tribunal internacional e pela ONU por duas razões:
 a) Além de isolar vários povoados palestinos de seus vizinhos, divide plantações e impede a circulação de pessoas e mercadorias;
b) o traçado do muro adentra em mais de 8% das terras palestinas da Cisjordânia. Assim, os grandes assentamentos ilegais construídos depois da guerra de 1967 seriam anexados por Israel.
No nosso país, há cerca de quinze milhões de brasileiros descendentes de libaneses e sírios, e 150 mil judeus. Os membros dessas comunidades convivem sem atritos e muitos compartilham relações de amizade.
Penso que todos almejam um acordo de paz no Oriente Médio. Mas esse acordo deve ser justo e equânime, pois os palestinos não vão aceitar um Estado retalhado e constituído por dois ou três bolsões de terra, sem continuidade territorial e sem acesso a recursos hídricos. Além disso, cinco milhões de palestinos vivem no exílio, muitos em acampamentos precários. São famílias que foram expulsas ou tiveram de fugir da Palestina em 1948 e nas guerras de 1967 e 1973. Ignorar ou esquecer milhões de exilados é uma ofensa moral a todo um povo.
O Hamas e o Hezbollah são considerados grupos terroristas pelos governos de Israel e dos Estados Unidos, e por uma parte da imprensa. Mas para imensa maioria dos palestinos e libaneses são partidos políticos, com representação nos parlamentos e forte atuação assistencialista nas áreas de educação e saúde. Ambos foram criados para resistir à ocupação militar que, nos territórios palestinos, configura-se como a mais longa da história moderna. O Hezbollah foi criado em 1982, depois da invasão do Líbano pelo exército de Israel.
Sou contra todo tipo de violência, inclusive a verbal. Discordo das práticas violentas desses dois partidos, e também de seu caráter religioso. Mas, rotulá-los simplesmente de “terroristas” pode encobertar a violência e a destruição muito maiores exercidas por Estados ditos democráticos.
Por exemplo, nessa última Intifada, morreram 3.610 palestinos e 696 israelenses (de setembro de 2000 a julho de 2006).
Esses dados são da organização pacifista israelense B’Tselen (www.btselem.org/ english/statistics/Casualties.asp).

“NADA PODE JUSTIFICAR A OCUPAÇÃO E O BOMBARDEIO”
Na abertura da Bienal do Cinema Árabe, realizada em Paris, em 22 de julho de 2006, um grupo de cineastas israelenses enviou uma comovente carta aos seus colegas palestinos e libaneses, da qual publicamos alguns trechos:
“Por intermédio de vocês, queremos enviar uma mensagem de amizade e solidariedade aos nossos colegas libaneses e palestinos que estão atualmente acossados e sendo bombardeados pelo exército de nosso país. Somos categoricamente contra a brutalidade e a crueldade da política israelense, intensificadas ao máximo nas últimas semanas. Nada pode justificar a continuidade da ocupação militar, do cerco e da repressão na Palestina. Nada pode justificar o bombardeio de populações civis e a destruição da infra-estrutura no Líbano e na Faixa de Gaza.
Permitam-nos dizer a vocês que os seus filmes, aos quais fazemos tudo para assistir e circular entre nós, são muito importantes para os nossos olhos. Esses filmes nos ajudam a conhecer e a compreender vocês. Graças a esses filmes, os homens, as mulheres e as crianças - que sofrem em Gaza, em Beirute e em todos os lugares em que nosso exército exerce sua violência -, têm, para nós, nomes e rostos.
Mantemos o compromisso de expressar – por meio de filmes, de ações pessoais e de voz elevada –, nossa oposição categórica à ocupação militar israelense. E de expressar também nosso desejo de liberdade, justiça e igualdade para os  povos da região.”

Boletim Mundo n° 5 Ano 14

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