domingo, 18 de dezembro de 2011

A GUERRA SEGUNDO HOLLYWOOD

Sérgio Rizzo

O Crítico francês André Bazin (1918-1958) — padrinho da geração de críticos revelados nos anos 50 pela revista Cahiers du Cinema e que, ao se tornarem cineastas, lançaram a nouvelle vague, um dos principais movimentos do cinema ocidental — cunhou a expressão “gênio do sistema” para se referir às características muito peculiares da indústria cinematográfica norte-americana.
Seria bobagem, argumentava Bazin, atribuir a este ou aquele indivíduo a qualidade de filmes produzidos de acordo com uma lógica industrial. Melhor seria considerar como responsável pelo bom funcionamento da engrenagem o tal “gênio” – uma feliz conjunção de fatores e talentos conspirando para que, na chegada do produto ao mercado, houvesse comunhão com o público consumidor.
O jargão econômico usado na frase anterior não é de Bazin, mas corresponde à percepção do negócio cinema pelos grandes estúdios dos EUA, que sempre se nortearam pelo cuidado em oferecer mercadorias que estivessem em sintonia com demandas da sociedade para alcançar, lá no fim da linha, a razão principal de ser de qualquer empreendimento inserido no capitalismo: gerar lucro para remunerar os acionistas.
Junte-se uma coisa (o funcionamento impessoal e relativamente anônimo do sistema industrial, traduzido por Bazin com a imagem do “gênio”) com a outra (a percepção do que será socialmente desejável, ou ao menos a busca por essa “sacada”, daqui a um ou dois anos, o tempo mínimo entre o pontapé inicial de um projeto e sua conclusão) para compreender a recente mudança de ares vividos por produções norte-americanas que tratam de dilemas sociais e políticos do mundo atual.
O que fazem os suspenses de espionagem sobre o agente desmemoriado Jason Bourne (“A Identidade Bourne”, de 2002 e “A Supremacia Bourne”, de 2004), a intriga estatal-corporativa de “Syriana” (2005) e mesmo o espírito de docudrama de “Vôo 93” (2006), por exemplo? Espelham o arcabouço de interesses da economia globalizada, cujas conexões com o Estado, supostamente complexas para a compreensão do cidadão comum, geram uma atmosfera de permanente incerteza. Agora, antigos mocinhos são transformados em vilões, e os protagonistas se submetem a dramas de consciência que os levam a questionar a quem efetivamente servem ou serviam.
Haveria espaço para esse gênero de abordagem sem que a sociedade norte-americana estivesse disposta a encampar uma visão amargurada da ação do Estado e dos representantes das mega corporações e seus oligopólios? Improvável. O faro do “gênio do sistema” — que acerta na maioria dos casos, mas também erra, uma vez que tem origem na imperfeita ação humana — detectou, a cinco anos de distância do 11 de Setembro, que já se consolidou entre milhões de cidadãos a convicção de que a geopolítica atual envolve tons bem mais cinzentos do que o canhestro preto no branco proposto pela administração Bush II.
Na história de Hollywood, esse tom configura novo capítulo em uma trajetória que passa pelos filmes antinazistas realizados durante a II Guerra Mundial e, depois, pela extensa tradição de aventuras e suspenses de espionagem (mais uma ou outra comédia de humor negro) inspirados na Guerra Fria, que se estende até o início dos anos 90 e perde razão de ser com a desintegração da URSS. A distinção entre o bem e o mal, nessas cinco décadas, sempre foi muito simples: o paraíso para quem está do “nosso” lado da Cortina de Ferro e o inferno para os demais. A dificuldade norte-americana de compreender o outro e suas motivações encontrou no cinema, durante esse período, terreno fértil para a propagação de idéias prontas sobre o Leste e o Oeste, sobre comunismo e capitalismo, sobre autoritarismo e democracia.
Nem mesmo o que de melhor Hollywood fez, como os filmes de Alfred Hitchcock, escapou inteiramente dessa leitura bicromática. A caricatura dessa visão redutora — mas caricatura bem-sucedida, porque o “gênio do sistema” provavelmente captou ressonâncias sociais para isso — está representada em filmes como os da trilogia “Rambo” (1982-1988): o mundo visto da perspectiva Reaganiana, nos anos 80, era espaço de atuação da “polícia global” norte-americana. O personagem de Sylvester Stallone combinava elementos que vinham também da mitologia do self-made man que luta solitário pela justiça, espécie de “Rocky” — o boxeador determinado da série iniciada em 1976 — cujas lutas se dão num ringue sem juiz ou jurados.
A atual Hollywood, com seus heróis de traços mais humanos e conflitos existenciais, inseridos em teias de aspectos sombrios, atende também a um movimento de reconquista do público adulto, que foi para casa, a partir do final dos anos 70, deixando as salas de cinema para adolescentes e jovens. Hoje, esses mesmos adolescentes e jovens, que respondem por todos os grandes sucessos de bilheteria das últimas duas décadas, de “Titanic” (1997) à trilogia “O Senhor dos Anéis” (2001-2003), vêm se dedicando a outros interesses – inclusive o de baixar gratuitamente filmes da internet. Que voltem os adultos aos cinemas, suspira o “gênio do sistema”, disposto a oferecer a eles produtos mais sofisticados, ou simplesmente mais próximos dos contornos da sociedade contemporânea.

História e Cultura n° 6 Ano 2

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