Em meio às incertezas da contagem de votos das eleições presidenciais no México, em julho, jornalistas em Washington foram surpreendidos com a entrada em cena, para falar das repercussões no universo oficial dos Estados Unidos, de um representante do Conselho de Segurança Nacional. O esperado era que se manifestasse alguém do Departamento de Estado, como em geral acontece em casos como esse. As eleições mexicanas estariam sendo encaradas pelo governo Bush como questão de segurança nacional?
Veio à lembrança o ruidoso “caso Zimmerman”, assunto de livro da historiadora Barbara Tuchman.O México é tão intrinsecamente ligado aos Estados Unidos que é difícil vê-lo como capaz de criar problemas para seu vizinho todo-poderoso e, muito menos, como país que possa ameaçar o bem-estar dos americanos, além das ações de traficantes e das pressões migratórias, mesmo elas com o seu lado “positivo” – o de fornecer mão-de-obra barata e disposta a pegar no pesado. Mas, na época da Primeira Guerra Mundial (1914-18), um telegrama assinado por Zimmerman, diplomata alemão de alta patente, deu pistas para a identificação de manobras da Alemanha com o objetivo de conseguir influência no México.
Com as grandes potências a caminho da Segunda Guerra Mundial (1939-45), o México nacionalizou o petróleo e os Estados Unidos não reagiram irados, como era esperado... Importava sobretudo preservar a política da boa-vizinhança, tendo em vista a catástrofe que se aproximava. Aí temos, portanto, antecedentes não muito distantes de um México tratado em Washington como peça da segurança nacional.
A história estaria se repetindo? Gabinetes oficiais da capital americana estariam imaginando um México como possível ninho de “células” sob mira dos cruzados da “guerra ao terror”? O Partido da Revolução Democrática (PRD), dissidência do Partido Revolucionário Institucional (PRI) – o aparato político dominante ao longo de 71 anos, um antro de máfias – teve entre seus criadores Cuautemóc Cárdenas, descendente de Lázaro Cardenas, comandante da nacionalização do petróleo e cuja efígie ainda hoje tira o sono dos americanos.
Nas eleições de julho, o PRD apresentou um candidato “competitivo”, López Obrador, com discurso diferente do de Felipe Calderón, do governista Partido de Ação Nacional (PAN). Calderón exibiu uma folha de serviços “impecável”, que inclui o papel de “leal oposição” ao velho PRI.
Com sua bancada o PAN ofuscava a imagem de regime de partido único e acabou sendo o beneficiário imediato do fim do reinado do PRI. Em 2000, o PAN elegeu Vicente Fox, de quem Calderón, formado na universidade americana Harvard, foi ministro. Ambos têm a visão de um livre mercado absoluto. Obrador, ao contrário, imagina um Estado “forte” subsidiando os setores mais pobres da população.
Um participante de um painel da BBC de Londres disse que as eleições no México foram de esquerda contra a direita, de pobres contra ricos e de norte contra o sul.
Direita, ricos e norte certamente significam, na cabeça do autor da declaração, os Estados Unidos, cuja forte presença no processo político mexicano não é possível escamotear. Houve cenas de promiscuidade explícita. O presidente Fox apresenta-se como “irmão” de George W. Bush.
Calderón tornou-se garantia de um governo ao sul do rio Grande “articulado com o que pensa Washington”. Obrador, por outro lado, poderia esticar até as margens do rio Grande a chamada “onda de esquerda” que, segundo setores em Washington, toma conta da América Latina. Mas nem Obrador e nem o mais esquerdista dos mexicanos consegue escapar do fato, e de seus imperativos, de que o México está “inserido” na política interna americana.
Há 6,2 milhões de mexicanos vivendo ilegalmente nos Estados Unidos. O dinheiro enviado por essa gente (US$ 20 bilhões em 2005) é a segunda fonte de renda do México. Só perde para o petróleo.
O jornal Washington Post escreveu que o México é o “subtexto” do debate sobre imigração nos Estados Unidos. O México exportaria menos pobres, e isso interessa aos americanos, se crescesse com maior rapidez, fossem criados mais empregos e melhorado o padrão de vida da população.
Desde 1990, os mexicanos representam entre 20% e 25% de todos os imigrantes nos Estados Unidos.
As causas não são misteriosas. Em 1970 a renda média dos sul-coreanos era a metade da dos mexicanos. Em 2004 constatou-se inversão brutal: a Coréia do Sul já apresentava o dobro da renda per capita do México... A renda per capita no México avança, em média, apenas 0,5% ao ano.
Obrador prometeu na campanha eleitoral melhorar o padrão de vida (palmas americanas) subsidiando (uivos americanos) quem ganha menos de US$ 800 mensais.
É o dilema dos Estados Unidos e seus afilhados mexicanos. Com o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), as exportações mexicanas dispararam, em oito anos as indústrias cresceram 54% e a inflação permaneceu sob controle, mas os salários se reduziram.
“Bom para as corporações, um fracasso para os trabalhadores”, é a sentença de Obrador. Ele não defende ruptura com o Nafta. Nenhuma grande corrente política mexicana defende isso. Mas acha necessário “aperfeiçoar” mecanismos de cooperação para o desenvolvimento. Não só livre comércio, não só obediência aos mercados, também um Estado em condições de investir no social.
O sul contra o norte faz algum sentido.
Há quem ache que inchações da “onda esquerdista” (no caso do México sob o impulso de Obrador) colocaria em jogo a própria correlação de forças da América Latina com os Estados Unidos. Calderón é a continuidade total e Obrador passou a impressão de uma certa continuidade na economia, com um diferencial importante: o uso de “excedentes” em políticas públicas de atendimento aos mais pobres.
Mas, no campo político e das relações externas, Obrador representou o desejo de maior aproximação com o restante da América Latina.
Em outubro haverá preenchimento de vaga de membro provisório no Conselho de Segurança da ONU. A Venezuela é candidata. Os Estados Unidos fazem dura campanha contra e promovem a Guatemala.
O governo Fox, que só termina em dezembro, já anunciou que a Guatemala terá o voto do México. Se Obrador fosse o vitorioso, não endossaria esse voto. O México de Fox promove o Programa de Integração Energética Meso-Americana, ou seja, entre México e América Central.
O objetivo é contrapor-se, na esfera do petróleo e do gás, ao eixo Venezuela- Cuba-Bolívia. A iniciativa mexicana conta, é claro, com total apoio da diplomacia americana.. Obrador, ao que parece, não está nessa. A própria secretária de Estado americana Condoleezza Rice, lançou uma estratégia de isolamento de Chávez. Calderón representa um sim a ela; Obrador, talvez um não. A vitória do primeiro, ainda contestada pelo segundo, não é um detalhe na política internacional.
Boletim Mundo n° 4 Ano 14
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