sábado, 17 de dezembro de 2011

A HISTÓRIA VISTA PELO PRISMA DA GUERRA

José Arbex Jr.

O que é a Guerra? Aparentemente, a resposta é simples: trata-se de um conflito generalizado entre dois ou mais países (ou entre segmentos de uma mesma sociedade, no caso de guerras civis), causador de muitas mortes, sofrimentos e destruição. Essa definição, embora correta nos seus traços mais imediatos, é fraca e imprecisa. A guerra – qualquer guerra – é sempre o resultado concentrado de uma vasta gama de condicionantes políticos, econômicos, culturais e tecnológicos que interagem entre si de maneira complexa. Uma guerra nunca é igual a outra. Cada guerra é a expressão singular de determinada conjuntura.
Ainda assim, a prática da guerra faz parte da história da humanidade em seu conjunto. Para muitos pensadores, guerra se confunde com história, a tal ponto que uma não seria possível sem a outra. Alguns, como Hobbes, chegam a afirmar que a guerra é inerente à condição humana: o homem, nessa perspectiva, seria o “lobo do homem”.
Mesmo aqueles que não concordam com tal afirmação são obrigados a admitir que o mundo sem guerra só existe na imaginação dos músicos e poetas, ou nos sistemas utópicos criados pelos filósofos. Querendo ou não, somos obrigados a refletir sobre o fenômeno da guerra, se ambicionamos conhecer a história do mundo.
Daí a importância de um livro como História das guerras, organizado por Demétrio Magnoli, editor de Mundo.
Quinze autores (especialistas, historiadores, jornalistas), incluindo o próprio Magnoli, tratam de quinze conflitos de grande importância histórica, do Peloponeso (cinco séculos antes de Cristo) ao Golfo contemporâneo. Ao longo de 480 páginas, o leitor é brindado com relatos e análises auxiliados por mapas, que iluminam os aspectos centrais de cada um dos conflitos. São textos muito informativos, escritos em ritmo fluente e acessível aos “leigos”.
Os capítulos, que podem ser lidos na seqüência ou isoladamente, como verbetes de referência, formam um todo orgânico que permite uma compreensão mais sofisticada dos motivos que levam às guerras, e das formas pelas quais elas foram construídas ao longo de milênios de história. Mas seria impossível, obviamente, tratar de um tema tão vasto e complicado sem que surgissem problemas e polêmicas.
Logo no início de sua introdução, Magnoli utiliza a expressão “quinze guerras que mudaram a história”. O que significa “mudar a história”? A expressão não tem sentido, a menos que se imagine que a história teria um curso pré-definido (por quem?) e alterado pelos acontecimentos em pauta. Não se trata de uma mera picuinha semântica: envolve, ao contrário, um debate sobre o que é história. Existe mesmo uma história universal de toda a humanidade, com um sentido determinado, ou tal história será apenas uma construção ideal, articulada para iluminar certos aspectos (supostas “leis gerais”) e ocultar outros, segundo a conveniência do narrador?
Magnoli pretende identificar uma dessas supostas “leis gerais” no mundo moderno: enquanto a política externa dos Estados Unidos seria motivada por um sentido moralista e missionário de preservar a liberdade como valor universal, ideologicamente explicitado na forma do “destino manifesto”, para os Estados europeus a política externa teria o único objetivo de preservar o interesse nacional, ainda que seus porta-vozes adotem, eventualmente, uma retórica universalista. Tal pressuposto é muito complicado.
A Revolução Francesa de 1789 foi portadora da mais universal de todas as utopias (liberdade, igualdade, fraternidade), ao passo que os revolucionários americanos de 1776 preconizavam o mais particular de todos os direitos: o de cada indivíduo buscar a sua própria felicidade.
Napoleão Bonaparte é o próprio emblema do paradoxo: sua marcha de conquistas rumo à expansão e consolidação do Império Francês era percebida pelas monarquias européias como mensageira do mesmo vendaval libertário universalista que derrubou a Bastilha, como observa Marco Mondaini, no capítulo “Guerras napoleônicas”. Tantos exemplos e contra-exemplos poderiam ser esgrimidos ao longo dos dois últimos séculos de história, que a mera enunciação de uma lei tão geral quanto a pretendida por Magnoli soa algo artificial, com o pronunciado perigo do anacronismo.
Outro problema, mais ou menos inevitável, decorre da forma pela qual o livro foi organizado. Como o espaço dedicado à análise de cada guerra é relativamente curto, algumas afirmações são feita de forma excessivamente generalizada. Ao analisar as Guerras Púnicas, por exemplo, Renata Senna Garraffoni afirma: “Era importante para os romanos manter as histórias de suas origens relacionadas aos deuses, pois isso legitimaria seu domínio sobre os demais povos que foram conquistando ao longo dos séculos.” O problema é que não apenas os romanos, entre os antigos, relacionavam suas origens aos deuses.
Bem ao contrário. É difícil, além disso, afirmar que tal reivindicação divina tem sua causa numa suposta “vontade de conquista” dos romanos, e não na explicação mitológica sobre a origem das coisas, da vida e das sociedades à qual recorriam as sociedades da época. Que tal fábula tenha, posteriormente, assumido a forma de uma ideologia legitimadora, sim, é mais plausível.
Em outro capítulo, sobre o Oriente Médio, o autor  Cláudio Camargo aparentemente aceita como verdadeira a interpretação israelense da Resolução 242/67 das Nações Unidas, que determina a retirada das tropas de Israel dos territórios ocupados após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Em óbvio contraste com o espírito da determinação, os negociadores israelenses alegam que ela obriga a desocupação “de” (alguns) e não “dos” (a totalidade) territórios. Não é uma questão menor. Longe, muito longe disso. Caso se aceite a versão israelense, a resolução da ONU foi plenamente acatada, com a recente retirada unilateral da Faixa de Gaza, ou, bem antes, com a devolução do Sinai ao Egito. Caso contrário, será forçoso reconhecer que Israel coloca-se, como Estado, fora da lei.
Finalmente, ao analisar a invasão do Iraque, em 2003, o jornalista William Waack fornece uma explicação ingênua, para dizer o mínimo. Os Estados Unidos, traumatizados pelo atentado de 11 de setembro de 2001, teriam assumido a decisão de atacar o Iraque motivados  pelo desejo de acabar com o terrorismo. Mas é público e notório, contra o que sugere a interpretação de Waack, o fato de que o presidente George Bush e sua equipe de governo nunca foram motivados por tal desejo: deliberadamente, Bush mentiu sobre os supostos vínculos entre Saddam Hussein e Osama Bin Laden, bem como sobre o suposto arsenal iraquiano de armas de destruição em massa. A invasão do Iraque nunca foi motivada pelo combate ao terrorismo, mas sim pela estratégia de controle direto da segunda mais importante reserva de petróleo do planeta. Novamente, confunde-se aqui a retórica com as reais motivações dos governantes.
O livro suscita, portanto, uma série imensa de debates, e esse é o seu maior mérito.

Boletim Mundo n° 2 Ano 14

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