sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

ESPAÇO, VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA

Luiz Eduardo Soares

Gávea ou Rocinha? A cidade é formada por territórios cujo valor se expressa no plano simbólico. As prioridades das políticas de segurança pública são definidas por esses símbolos, que incluem ou excluem.
O namorado de minha filha era um rapaz adorável: educado, trabalhador, honesto e prestativo. Nossa família o acolheu como um filho. Morávamos no subúrbio e ele na Gávea, bairro nobre do Rio de Janeiro. Quando ficava tarde e eu lhe oferecia carona, com meu táxi, não aceitava. Até que um dia, em meio a um temporal, depois de insistir muito, tive de brigar com ele: disse que o levaria em casa de qualquer jeito. Já estava me intrigando aquela recusa sistemática e veemente às caronas.
No início, pensei que fosse educação.
Depois, comecei a desconfiar. Quando passávamos por São Conrado, a caminho da Gávea, pediu que eu parasse. O rapaz gaguejava de tão nervoso. Queria descer ali. Repetia que ali já estava perto o suficiente, que dali tomaria um ônibus. Mas ele viu que era inútil. Eu seguia adiante, determinado a levá-lo até a porta de sua casa. De repente, o rapaz desabou: chorando, confessou  que era da Rocinha e que mentira porque temia ser proibido de namorar minha filha e expulso de nossa casa.”
O taxista abraçou o rapaz e esta história (real) teve um final feliz. Mas nem sempre é assim. O medo e a vergonha do rapaz não surgiram por acaso. Ao longo dos anos, viu oportunidades de empregos e portas se fecharem, quando descobriam que morava na favela.
Morar, viver, pertencer constituem referências fundamentais.
O desafio está em converter a fonte de vergonha em razão de orgulho, sem exclusivismos.
O espaço em que vivemos não é apenas um lugar, mais ou menos agradável, bonito, saudável e funcional.
É um território carregado de significados e história, que projeta sobre seus  habitantes marcas e símbolos, positivos ou negativos. Acontece que os símbolos expressam, reproduzem ou criam determinada distribuição de poder social. Por isso, um problema não ingressa na agenda pública e se torna objeto da ação governamental apenas por sua importância – isto é, em função da magnitude dos malefícios que provoca e da quantidade de cidadãos atingidos. Ele é filtrado por um crivo que lhe confere peso relativo, segundo escalas de poder que diferenciam o valor de sua localização geográfica – ou seja: a inscrição territorial dos que sofrem seus efeitos e vocalizam a necessidade de sua resolução representa um dos principais indicadores nesse processo seletivo.
Um exemplo revelador é a segurança pública na cidade do Rio de Janeiro. A maior quantidade de roubos e furtos (e de homicídios dolosos) se concentra nos bairros pobres e de classe média baixa. Entretanto, quando observamos a distribuição dos recursos públicos da segurança (efetivos policiais, viaturas, câmeras, focos de patrulhamento, etc.) encontramos o quadro invertido: o foco da atenção se situa nos bairros nobres e nas áreas mais afluentes. Certamente, isso não se deve a erro de diagnóstico, por parte das polícias, mas a uma decisão de natureza política. Nesse cálculo, a relevância deriva do significado político do espaço urbano.
Ante o crescimento da violência criminal, a dimensão política da geografia social tornou-se dramaticamente importante. Em muitas favelas, onde vivem centenas de milhares de pessoas, as leis são ditadas pelo arbítrio de traficantes de armas e drogas. Esses enclaves estão, em certo sentido, excluídos do âmbito de autoridade do Estado de Democrático de Direito. Por conta da degradação das instituições policiais – na contramão da vontade e dos esforços de um número expressivo de profissionais honrados e competentes – sobrepõe-se, ao despotismo do tráfico, a tirania de segmentos corruptos e brutais das polícias. As comunidades acabam sofrendo a dupla opressão, enquanto traficantes e policiais disputam e negociam entre si, à margem da legalidade.
Além da formação dos enclaves, que circunscrevem e isolam comunidades, a estratégia dominante nas políticas de segurança mais comumente adotadas, nas últimas décadas, com significativas exceções, tem reforçado a inscrição, na geografia da cidade, de fronteiras simbólicas e políticas, geradoras de estigmas e preconceitos, medo e ressentimento. Refiro-me às incursões bélicas às favelas (como se elas fossem territórios inimigos), operadas pelas polícias, nas quais morrem policiais, moradores inocentes e jovens ligados ao tráfico. No dia seguinte a cada incursão, sepultam-se os mortos, intensificam-se o sofrimento e o ódio recíproco, e os meninos do tráfico são substituídos como peças de reposição. A dinâmica da criminalidade não é afetada. Nenhum resultado positivo é alcançado. O ciclo perverso se reitera, sem qualquer alteração.
A única forma de mudar o moto perpetuo  da tragédia anunciada seria a interceptação da dinâmica criminal, impedindo sua reprodução. O modelo de referência deveria ser a competição, não a guerra. Como os meninos são recrutados pelo tráfico, porque recebem benefícios simbólicos, afetivos, subjetivos, sociais e econômicos (basicamente, a valorização da auto-estima, a fruição do sentimento de pertencimento e o acesso a bens de consumo), o poder público teria de disputar menino a menino, oferecendo pelo menos os mesmos benefícios, com sinal invertido, através de políticas públicas inteligentes, articuladas, inter-setoriais, combinadas com ampla participação social, fundadas em diagnósticos sensíveis às especificidades locais.
Isso mostra que a geografia social é a linguagem dos problemas, mas também das soluções, e que não haverá política pública eficiente se faltar sintonia com os desafios lançados à imaginação coletiva pela territorialidade e seus significados.

Boletim Mundo n° 3 Ano 14

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