Newton Carlos
Os historiadores acharam um nome significativo para a arte de dispor de nações pequenas ou em processo de deterioração.
Definiram como “balcanização” a distribuição entre potências de áreas de influência criadas pela desintegração de países perdedores de guerra. Foi nos Bálcãs que se deu um dos casos mais significativos desse tipo de política, executada com lápis e mapas em punho: a divisão do Império Turco-Otomano, derrotado na Primeira Guerra Mundial (1914-18). Grã-Bretanha e França foram os beneficiários do “banquete” e os Bálcãs, como referência, acabaram incorporando condições permanentes de instabilidade produzida por rivalidades étnicas e religiosas.O Iraque também resultou da derrota do Império Turco-Otomano e em sua história aparece com freqüência a denominação de “Bálcãs do Oriente Médio”. Por trás de todo o jogo geopolítico estava uma riqueza “com grandes perspectivas”, o petróleo no subsolo árabe, na época sofrendo as primeiras grandes arremetidas por parte das potências ocidentais. Valia tudo em função dos novos interesses estratégicos e Londres, com Winston Churchill à frente do aparato colonial, juntou três províncias (Mosul, Bagdá e Basra) de modo arbitrário, sem levar em consideração que compunha um amontoado disforme e de conteúdo explosivo.
Mosul, na região curda do norte, tinha o petróleo. Basra, na região meridional xiita, a saída para o Golfo Pérsico. Bagdá, o centro sunita, soldava os poços ao porto (veja o Mapa). Os britânicos imaginaram que podiam acomodar muçulmanos xiitas e sunitas, curdos seculares e uma variada gama de minorias, incluindo cristãos, numa nova “nação”, submissa às ambições da matriz que se instalava com disposição de cavar fundo.
Ledo engano, o que exigiu o recurso às armas. O Iraque foi criado nos anos 20 pelos britânicos com tal brutalidade contra resistências nativas que o agente secreto Lawrence da Arábia, estarrecido e revoltado, escreveu no Observer, de Londres, que “só por milagre não usamos gases venenosos” contra tribos xiitas rebeladas.
Surgia, a ferro e fogo, uma nova nação, de mal traçadas linhas, cortada segundo os interesses imperiais.
Em menos de uma hora, localidades inteiras eram destruídas com bombardeios aéreos e seus habitantes, mortos ou feridos. Depois da “limpeza” do terreno, em 1921 os britânicos instalaram uma monarquia no Iraque.
Acabou golpeada por militares nacionalistas, que desertaram do Pacto de Bagdá, a aliança militar criada como ponta-de-lança do Ocidente no Oriente Médio.
O general Karin El- Kassen, chefe do golpe antimonárquico, caiu em 1963, derrubado por novas idéias em ascensão. Desde os anos 30, intelectuais de classe média, que articulavam-se sobretudo na Síria, pregavam a demolição das “influências externas” no mundo árabe. Em 1947, depois das frustrações com a incapacidade árabe de impedir a criação de Israel, naquela altura já praticamente definida, nasceu em Damasco o partido internacional Baath, “ressurreição” em tradução aproximada. A pretensão era criar um universo árabe secular e anti-imperialista. O Baath instalou-se no Iraque, em 1954, e em pouco tempo reuniu forças suficientes para assumir o poder no lugar de El-Kassen, que havia proclamado a república, numa das comoções mais profundas e mais radicais sucedidas no Oriente Médio.
El-Kassen cometeu “pecados” graves, como nacionalizar o petróleo e flertar com Moscou. Há suspeitas fortes de que a CIA ajudou os baathistas, entre os quais já militava um jovem ambicioso chamado Saddam Hussein, que se tornou ditador em 1979 e não deixou uma só bala na agulha em sua disposição de construir um Iraque “unificado e pacificado”. Reprimiu curdos e a maioria xiita e privilegiou os sunitas, ele próprio um deles.
São históricas e profundas as divergências entre sunitas e xiitas, relacionadas com a sucessão do profeta Maomé. Os xiitas se consideram defensores dos oprimidos, críticos e opositores dos privilégios do poder.
Os Estados Unidos ocuparam um Iraque de certo modo “enquadrado” em suas fronteiras arbitrárias, com um poder secular, com os curdos às vezes premiados com alguma autonomia, e a maioria xiita (60% da população) subjugada.
O que acontecerá se o Iraque se desintegra?
Todo o Oriente Médio pode pegar fogo, é a opinião de muitos especialistas.
Nas eleições de dezembro, os iraquianos votaram de modo sectário, em religião e etnias – e os xiitas ficaram com a maioria dos votos. Na indicação do primeiro-ministro que chefiará um governo efetivo, teve peso decisivo a posição de um líder de milícia islâmica, Moqtaba Sadr, inimigo jurado dos americanos e, como acusou um político secular, em “perfeita sintonia” com os xiitas no poder no Irã. O embaixador de Bush no Iraque afirmou que o Irã, além de dar dinheiro e armas, treina milícias no Iraque.
Um poder xiita em Bagdá, mesmo sob fogo de sunitas minoritários, poderá alterar todo o cenário do Oriente Médio, até hoje basicamente dominado pelos sunitas.
O rei da Jordânia previu uma “onda xiita”, violentamente anti-ocidental e anti-árabes moderados, a partir do Irã e do Iraque. No Líbano, a “onda” seria representada pelo Hezbollah. O Irã, já mentor do Hezbollah, se oferece para compensar cortes de ajuda ocidental à Autoridade Palestina sob o Hamas. A ocupação do Iraque teria criado, portanto, condições para que se forme uma “onda xiita” no Oriente Médio e se fortaleçam os partidos radicais, anti-Ocidente. Não é o que esperavam os neo-conservadores de Bush na hora da marcha triunfal sobre Bagdá.
Boletim Mundo n° 2 Ano 14
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